sábado, 30 de outubro de 2010

SEMANA DA POESIA V


fragmento de café com presumível burguês e uma armada em loira

o meu ideal de belo, permanecendo
sentado num café com mesa à espera e duas cadeiras
feitas sei lá de quê, além da minha,
é o teu cachecol preto de lã
assimétrico no modo de invadir o espaço ao novelo
ósseo do meu joelho, segundo a contar
do balcão aonde não chegaste à hora
marcada, ou os teus lábios frescos
com trejeitos de fruta, requinte viçoso,
derramando noticiários que as mãos esvoaçantes
de ênfase não sustêm e a que assisto embevecido
enquanto desfoco em intermitência o frenesi costumeiro
dos cafés em que estando não estamos, e tento
por vezes intersectar uma mão, outras
um dos gramas de saliva em pleno voo
sorrio levemente ao vê-los cair sobre “a hora
da sensação verdadeira”, na capa, pigmentos
liquefeitos sobre a eloquência do momento,
como se na sinestesia extrema de keuschnig,
handke adivinhasse a vida toda em cinco
talvez seis minutos de café

e nesse repente é-nos clara a partilha
mesmo da impaciência ou igual indignação por ver
aquele velho acabado de chegar, com fato e botões
de punho, arrecadar de imediato um café e ostentar
publicamente, e com debruado gozo burguês,
cinquenta cêntimos de gorjeta que o rapaz
agradece servilmente enquanto se retira para vir
à nossa mesa depositar uma chávena. diz trago já mais
um, entreolhamo-nos pensando aqueloutro era nosso e
ficaríamos assim completos, mas existe por vezes
uma metade retardada de nós, por deixarmos
que a cidade se antecipe enquanto parados no semáforo
monocromático de um cigarro, para só então
merecermos a restituição do tempo perdido

isto abrange, dizia, o belo indizível na contracção da tua
face luminosamente bicôncava nas bochechas
(por que foi que foste o sol quando eu já
me afeiçoava ao medo do escuro? porque foi.)
a maneira brutal de suavemente
me fixares — que nem a interrupção da senhora
cuja armação capilar aloirada flutua
na nossa direcção e pede por favor a cadeira
sobejante (esteja à-vontade, aquiesces)
consegue interromper, apesar de que
com tempo falaríamos disso a tarde inteira
por mester de maledicência às coisas soltas que nos caem
no colo e se perdem num vão de esquecimento
após serem ditas

seres perpendicular a cada minuto, sentada a meu lado
como a colher atida à curva do açúcar, conforme
às equações matemáticas e propensa às sucessões infinitas
da espiral congeminada dentro da chávena,
contém a ideia rodopiante de belo que filósofos ou estetas
serão incapazes de compreender, mas completa um café,
transborda na tarde em espuma invisível
 
 
Bill enGates

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