quarta-feira, 24 de novembro de 2010


"até no que se inventa não vale apenas o que seria"

A noite chega-me sempre tão claramente... por entre as portas fechadas, em candeeiros por acender, em trancas a portas e janelas, por tábuas sobre vidros colocadas. A noite chega-me sempre quando não quero, e quando quero também. Não gosto de o dizer muito alto (talvez por medo de me ouvir dizê-lo), mas acho mesmo que ela nunca se vai embora. E é no rescaldo do assombro da sua chegada que procuro uma outra noite, uma outra porta, uma outra casa, um outro ser. Uma imagem que alguém crie, cheia de luz, cheia de vida. Uma imagem que seja distante, que me faça longe, que me seja longínqua, uma qualquer imagem que não seja eu.
Hoje foi Clarisse quem ma trouxe. Leio e releio uma mesma frase. Leio e releio: "até no que se inventa não vale apenas o que seria..."
Quatro da manhã. Significa que já é dia? Sveglia, dizia ela, Sveglia toca e toca e toca, Sveglia: o tempo. Sveglia toda a Humanidade e o que a atormenta. Sveglia, de ceifa na mão, mais ou menos cadavérica, mais ou menos diabólica, Sveglia em elixir, Sveglia em ponteiros que não conseguimos travar, Sveglia de olhos postos em tudo o que fazemos.
Para mim Sveglia tem outro nome. Sveglia que me persegues, que sei seres tu a destapar-me noite fora, a sussurrar acorda ; Sveglia a invadir-me de ansiedade e de esperança, a projectar-me fantasias que nunca fui, Sveglia em tantos corpos, sob tantas formas, permanente na sua mudança ao longo dos anos, e nunca, absolutamente nunca, lhe posso chamar devir. Sveglia em mim és tu.
Quanto tempo passou desde que um raio de luz sobreviveu aqui dentro? Por mais de dois segundos? Há quanto tempo foi? Já não me lembro... Há quantos anos me chega Sveglia e entra e sai de mim sem que eu te sinta? Há quantos anos de sedas, de cabedais, de dedos escorregando em ligas e corpetes e adereços mais ou menos burlescos, mais ou menos vazios? Há quantos anos tudo o que queiras, levando tudo de mim? Há quantos anos sugares-me a vida devagar, sofregamente, entre meigo e agressivo, entre homem e máquina, entre outras e outros vícios, entre trancas à porta do meu quarto e empurrões entre paredes, esborrachada até esguichar, quantos? Há quantos anos de novo flores, de novo dias, de novo voltares após meses ausente, de novo sorrisos, de novo homem que sinto em cada poro, de novo reflexo de vida? Há quantos anos talvez sim, talvez volte, talvez fique, talvez não mais agrilhoada, talvez nenhuma outra, talvez nenhuma marca, talvez nenhuma garrafa, talvez nenhum serviço? Há quantos anos serviços em que me vendes? E gostas de ver-me ser comprada e recomprada em cada noite mais carnívora. Mas sem as ligas, sem as plumas, sem fantasias nem disfarces, que esses são o que eu sou para ti, o manequim, e neles sou eu despojada de tudo, até de dignidade, neles eu ainda marioneta tua, mas eu em todas as minhas imperfeições. E ademais rentável.
Há quantos anos doentiamente ainda quero que fiques? Há quantos anos esperando o dia, o dia... as minhas próprias fantasias reais... as minhas fantasias... não, meu Sveglia, nem mesmo nelas vale apenas o que seria.


Virginia Machado

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