sexta-feira, 5 de novembro de 2010
Um dia Imaginário
Pela manhã ergo o invólucro em ânsias vitais, arrasto-me entre a necessidade e a realidade e, de soslaio, vejo a noite reflectida no espelho avariado que se vem colocar a meu lado (ecrã panorâmico onde passa sempre o ridículo filme de mim mesmo). Sorvo um duche meio morno que nunca me desperta do sono, saio do meu quarto crescente envolto num agradável aroma a café, enjoo, abro os sentidos e a porta da rua. Quando me lembro de ti: eu sei que o meu espelho te mentiu, eu não era eu, nem saí de casa ontem à noite. Eras tu para me ver do outro lado do espelho, mas iludida pela refracção vias-me à tua imagem partida – fingias pegar num caco quadrado suave e cortavas as veias dos pulsos e o sangue espirrava, escorrria palas escadas de vidro que levavam ao fim do mundo. Ressuscitavas e revivias Fénix nos espelhos, sempre imagem a aparecer e a desaparecer, sempre a nossa loucura a renascer.
- Imagina se passássemos para o outro lado e os espelhos funcionassem, imagina!
Pela tarde a serra brilha no alto da neve, quando o sol vem poisar de mansinho sobre os cristais inconstantes, o solo ressuma a água bruta, pedra preciosa por fluir, por delapidar, por correr profunda e amar com a terra até ao mar. Os olhos feridos tocam os picos de neve lá no alto do que não abrangem, perdem-se no voo dos milhafres que os roçam esfaimados: do alto se topa a presa, e se afilam as garras para preparar o ataque mortal à sobrevivência. Nós morremos com o olhar no milhafre em queda rumo ao horizonte da razão, porque uns vivem mais e os outros não podem - porque alguém tem de nascer quando há um outro a morrer. Assim se cumpre a neve até chegar a ser regato; assim se cumpre o afluente até chegar a ser curso; assim se cumpre o rio até chegar a ser mar; até oceano e nuvem negra de incessante retorno, sempre a desabar e a resurgir.
- Imagina se ficássemos gelados e os picos de neve não derretessem, quantos mares por cumprir, imagina!
Pela noite fora, sempre o frio que paira em volta e dentro de nós. É o calor em fuga, até ao estio da manhã, até ao bafo quente do sol que emana dessas palavras fugídias que aquecem os nossos raros momentos. Esse calor que vai ficando frio em todos os dias anónimos, que habitamos até restarmos memórias assumidas por quem vive no acto de viver apenas o passado rumo ao futuro. Porque ele é a continuação do nosso próprio passado, e é tudo o que somos e fomos, o que somos e não podemos deixar de ser, porque não podemos fugir aos afectos sem ficar quebrados. A vida é uma sinfonia desconstruída com pedaços de marfim e ébano – as teclas frias separadas, umas pez outras pálidas, são ténues e fortes imagens dos nossos dias, beijos tocados por mãos que nos percutem a vida entre pautas de delírios.
- Imagina se os nossos beijos tocassem sem ter de ser tocados e se recusassem a ser semi-breves ao tocar a alma de um piano, imagina!
No final, restamos etéreas estátuas de sons, esculpidas numa alma em ferro com martelos dissonantes, cantando cantigas de revolta com as nossas bocas unidas por cordas vocais desatadas. Estamos sós, por vivermos tantas vidas:
- Imagina quantas vidas imaginárias teremos ainda de viver para podermos ser assim... imagina!
Joshua M.
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