quinta-feira, 25 de novembro de 2010


Corpo estranho

Tropecei no teu corpo. Esse empecilho persistente de odor viciante. Nego-te diariamente, mas tu ali, sempre ali, deitado à espera que te usufrua como se fosses uma fruta num cesto de cozinha. – “Vais apodrecer”, aviso. Mas fazes ouvidos moucos, incauto. Desejo-te mas apenas como se a química desse teu corpo equilibrasse o meu. Como se fossemos um bio-composto que, se incompleto, se tornasse letal e completo, curasse. Reconheço a minha própria necessidade de equilíbrio, por isso deixo-te estar aí deitado, inútil, à espera do impossível porque nem sabes como tornar seja o que for possível. Desse modo, secretamente, tenho a esperança de me vacinar dessa tua falta. Tenho a esperança de, tal como um vírus mutante, adquirir a forma necessária para sobreviver à tua ausência. Mas sei que te deveria varrer e pôr na cave das recordações remotas e distantes. Como se esses teus restos fossem desperdício de uma construção mal concebida. Talvez um desses dias tenhas essa coragem. Não te quero mal, só te quero fora do chão do meu quarto, da minha sala de jantar, da minha vida interior.


Lucinda Gray

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