segunda-feira, 12 de julho de 2010
SETE DIAS SETE PECADOS - PROVOCATIO VANITAS (I)
A Soberba de Lúcifer
Era um anjo muito anjo. Que nos punha debaixo das suas asas e nos levava a ver coisas que só ele conhecia. Não nos deixava ficar tristes. Não podíamos chorar. Mas também não nos apetecia chorar. Não nos deixava fazer disparates nem dar erros. Ninguém se chateava connosco, porque nós éramos seres lindos. Os nossos pais diziam que éramos filhos perfeitos. Um dia, caiu da torre da nossa escola e estatelou-se no chão. Havia muito sangue. E as penas das suas asas voavam por todo o lado. A Dona Henriqueta da secretaria disse-nos que deus o castigou, porque ele achou que era o melhor anjo do mundo. O novo anjo lá da escola pede-nos conselhos.
(E agora quem está de castigo sou eu que não fiz os trabalhos de casa)
Ana Santiago
SETE DIAS SETE PECADOS - PROVOCATIO VANITAS (II)
Vanitas Vanitatum Et Omnia Vanitas
Abro as minhas asas de fénix e resplandeço ao sol; abro a minha boca e canto a música das esferas: gostaria de ser outra pessoa, para me poder admirar como eu mereço.
Jonathan Strange
SETE DIAS SETE PECADOS - A VAIDADE (I)
Narciso e a Rosa
Narciso acordara um dia já feito homem, desnudo em pleno jardim, porte altivo de quem se espanta de se ver. Narciso nascera brotado de si, de um cruzamento de sol e clorofila, entre o orvalho gelado dos campos. Narciso surgira assim, meio do nada, meio de tudo, como uma espécie de Messias, com a ilusão de com seu toque magnânimo mudar o mundo. Narciso gerou-se a si próprio num corpo de homem, mas na ilusão infantil do mundo lhe pertencer. Narciso era também conhecido na gíria como Peter Pan, porque de facto interiormente nunca quis crescer.
Narciso correu os campos, confiante, mostrando toda a pujança do seu ser. Distribuía sorrisos e vislumbres de encantamento, rasgos sapientes de uma barata filosofia que como eureka lhe surge. O mundo para Narciso era ele, e ele de tal forma entranhado que nem se lhe poderia chamar egoísta. Narciso tentava mudar o mundo, Narciso sorria ao mundo, Narciso procurava conhecer o mundo, mas porque o mundo era seu, e tudo o que consigo se cruzasse a si se adaptaria, e todo o pensamento que formulasse partiria, giraria e acabaria no melhor para si. Narciso era assim um egocêntrico.
Um dia, ao caminhar para o lago onde sempre banhava seu corpo e sua alma (aquele irresistível momento orgásmico em que beija seu próprio corpo), descobriu algo novo entre o campo de flores que de cor conhecia (eram todas suas, todas, as florais memórias que ali jaziam inalteráveis). Era uma rosa, nova rosa vermelha que durante a noite brotara. Ela brilhava tão intensamente, cintilava tão ardentemente, tão diferente lhe parecia daquela paisagem que já conhecia!... A rosa era uma espécie de mistério. Havia sonhado com ela, mas nunca a pedira. Era rúbea, linda, mas tinha espinhos; ao contrário de todas as outras não desfalecia à sua passagem, era forte, indiferente, vivia independente a sua espinhosa força inebriada. Narciso logo se obcecara por aquela nova flor. Desconhecida, aparentemente distante, bela, tinha que tê-la! A rosa seria sua, tinha de ser!
Assim, ao voltar do seu ritual de auto-adulação, Narciso parou junto à rosa. Regou-a, sentou-se junto a ela, observou o sol irradiando em si mil tonalidades de escarlate, sorriu-lhe. Aos poucos foi-se aproximando, acariciou-lhe as pétalas, e de repente já os espinhos desapareciam ao vê-lo, e toda a vulnerabilidade da rosa lhe era visível. A rosa, como qualquer guerreira, é coragem que se mascara de defesas mas que é igualmente frágil por dentro. Narciso não o esperava. Para si o mundo era um prolongamento de adoração, uma batalha travada para afirmar o eu. Narciso viu, beijou, tomou em si a flor, e partiu saciado. A rosa era agora já só mais uma, talvez um pouco mais bonita, no meio de tantas outras. A rosa que nascera sem que ele pedisse era já sua, podia voltar ao rio para se banhar, inchando o peito em mais uma conquista. A rosa, por sua vez, aprendera que somos responsáveis por tudo aquilo que cativamos, e precisava de cativar e cativar-se. A rosa, que é forte, que é por si própria, que sabe partilhar com o mundo o melhor de si, que não vê o mundo à sua imagem mas como algo a que pertence, criara espinhos… Habituara-se havia já muito tempo à crueldade do mundo e o seu medo tornara-se enorme. Mas a rosa nunca resistia a um carinho inesperado... E a Narciso dera parte de si.
Narciso partira, julgando que nada mais teria para conhecer, permanecendo na Terra do Nunca onde não sabe o que significa cativar, onde não sabe o que significa olhar o mundo, onde não sabe amar mais que a sua própria imagem.
Narciso caiu no rio. A rosa, apesar de tudo, ainda chorou.
Virginia Machado
SETE DIAS SETE PECADOS - A VAIDADE (II)
Dorian Gray 2.0
ou
É tudo feito com espelhos
Aqui, o espelho retrovisor do seu automóvel. Ali, uma montra de uma loja. Mais adiante, o seu reflexo num espelho aleatório fixado a uma coluna por um decorador sem talento.
Como um narciso dos tempos modernos, Dorian não perdia uma única oportunidade de se perder no seu próprio reflexo. Apaixonado pela sua imagem que esculpiu meticulosamente até ao mais ínfimo pormenor, Dorian exigia dos seus espelhos o mesmo que exigia de si mesmo – a perfeição.
Mas não eram apenas os espelhos que Dorian usava para elevar o seu ego. Os outros seres humanos tinham a mesma função. As suas conquistas amorosas duravam apenas enquanto as suas vítimas estavam seduzidas e extasiadas pela sua perfeição física. Quando o efeito desse filtro se sublimava, era altura de passar à próxima.
No dia em que tudo mudou, Dorian entra no arranha-céus onde trabalha sentindo-se como uma pantera que caminha entre ovelhas. Pelo caminho sente um odor que lhe lembra o seu único calcanhar de Aquiles, o tabaco. Mas não será por muito tempo. O seu melhor amigo, Paul Whitehouse, dos recursos humanos é psicólogo e está a usar hipnoterapia para o livrar desse vício maldito. Sugeriu também utilizar o mesmo método para abordar a sua personalidade narcísica, mas apenas essa sugestão foi o suficiente para Dorian se enfurecer e não lhe falar durante duas semanas.
No elevador, também este com um generoso espelho, Dorian executa quase automaticamente os olhares e gestos necessários à manutenção permanente da sua beleza natural. No entanto, este espelho é diferente dos demais. Este não lhe devolve a imagem de beleza perfeita que ele sabe que tem, mas antes uma imagem quase perfeita, marcada que está por ínfimas rugas de expressão ao redor dos olhos.
Dorian sente o equilíbrio a fugir-lhe, substituído por uma náusea que o faz perder momentaneamente a habitual dignidade do seu porte.
Lembrando-se que não está sozinho no elevador, Dorian assume novamente o leme do seu ser, guiando-o na direção do seu escritório onde lançará luz sobre este estranho fenómeno.
No refúgio deste santuário, Dorian dirige-se à sua casa-de-balho privativa e mais uma vez contempla a sua imagem.
Desta vez, o resultado é dantesco. A sua pele não tem apenas rugas de expressão, está completamente destruída e rugosa como se este tivesse trabalhado uma vida inteira sob um sol ardente. O seu nariz, quase perfeito por natureza e perfeito por engenho humano, era agora uma triste réplica de uma nariz de palhaço, abatatado e vermelho. Os seus olhos, que outrora brilhavam com personalidade e espírito, pareciam agora mortos como os de um peixe. Até os seus dentes, sempre branqueados para contrariar o efeito do tabaco, estavam agora amarelos e apodrecidos.
Descrente, Dorian molha as mãos e a cara, passando as mãos molhadas pelo cabelo, apenas para descobrir que a calvície chegou lá primeiro.
O desespero é atroz, neste cenário que parece saído da quinta dimensão.
Só há uma pessoa em todo o mundo que Dorian permitiria que o visse assim. Paul Whitehouse. Pega no telefone e, com as mãos tremidas, começa a carregar nas teclas. Após algumas tentativas frustradas pelo pânico, consegue finalmente chamar o seu anjo salvador.
Paul abre a porta do escritório para encontrar um coelho que caminha entre raposas.
“Tem calma Paul. Sou eu, o Dorian. Não sei o que me aconteceu!”
“Claro que és tu Dorian. Não esperava outra pessoa.” disse Paul.
“Então tu vês-me como eu sou?” disse Dorian com um raio de esperança.
“Claro que vejo. O que é que tu tens hoje?”
“Tu não vais acreditar nisto, ou se calhar até vais, não sei, se calhar a psicologia explica isto. Mas hoje, quando me vi ao espelho, vi a imagem de um homem horrível, com a pele rugosa, careca, dentes amarelos, e um nariz que parecia todo ele uma verruga sangrenta.”
Paul pareceu ficar paralisado, a face congelada numa expressão de absoluto espanto. Quando finalmente conseguiu falar disse “Mas Dorian, esse és tu!”
Dorian passou de imediato da negação à raiva. “O que queres tu dizer! Eu não sou esse. Eu sou perfeito. Olha!” E arrancou da sua secretária uma fotografia sua, apenas para descobrir que a sua imagem estava tão grotesca quanto o seu reflexo.
Dorian largou a moldura como se esta estivesse a arder. Esta caiu ao chão e, porque as molduras não têm sentido do dramático, não se estilhaçou.
“Isto é impossível.” disse Dorian. “E as mulheres que eu conquistei, lindas todas elas.” Tira o seu telefone e procura imagens da sua última conquista, apenas para contemplar uma mulher que faria a Susan Boyle parecer Helena de Tróia.
Paul diz então “Tem calma. Eu vou só ali despachar uma entrevista e já volto. São dois minutos, não faças nada” – e sai do escritório.
Dorian arremessa o seu telemóvel contra a porta do escritório, fechando-a, trancando-a em seguida.
Ele sabe o que tem de fazer. Na gaveta de cima da sua secretária está uma pistola. Não foi ele que a pôs lá e não sabe como lá foi parar, mas ela é a solução dos seus problemas.
Paul Whitehouse está sentado, sozinho, no seu gabinete quando ouve um único disparo. Encosta a cabeça na sua ampla cadeira ao mesmo tempo que um sorriso maquiavélico lhe toma conta do rosto. “Eu bem te disse que com a hipnoterapia deixavas de fumar; de fumar e de foder as mulheres dos outros!”
Jonathan Strange
domingo, 11 de julho de 2010
Provocatio
A importância da aparência e do conteúdo
O que será pior para uma mulher?
Que a amem apenas pela sua aparência...
...ou apenas pela sua inteligência?
Vou ser sincera... Acho que a segunda hipótese é mais lixada!
Ana Santiago
sábado, 10 de julho de 2010
Crónica Benzodiazepina
Eu, Abel
Eu, Abel, sei de Caim. Conheci-o, vivi-o. Se existe? Sim.
Se a história entre estes dois irmãos se cumpre da forma como a bíblia vaticina? Pormenores. Não importa. Se a bíblia é um manual de maus costumes? Claro que sim, mais do que isso, é o espelho da nossa humanidade, um aviso quanto aos nossos limites ilimitados. Um aviso à nossa natureza e capacidade de a ultrapassar, ou não. Um aviso à nossa forma de amar, à nossa forma de odiar. A bíblia é uma verdadeira alegoria de Darwin. Adão e Eva, um que nasce da costela do outro, tão refutado pelo movimento feminista… e afinal, apenas a duplicação da unicélula, defendida pela teoria evolucionista.
Mas Abraão... é efectivamente o único exemplo bíblico que me causa náusea, (e, eventualmente, a razão pela qual o seu nome rima com um palavrão). Porquê? Pela simples razão de ser o único fanático capaz de pôr em causa a vida de um filho como prova de fé! Kirkegaard, para mim o filósofo maldito, defendia que o estádio religioso só se dá quando desistimos do colectivo e o encontramos dentro, bem dentro de nós. A comunhão não é possível. Não se comunga fé. Essa é pessoal e intransmissível. Deus? Todos o temos, cada um o seu! O meu, se me pedisse uma prova de fé semelhante, deixaria de ser meu. Execução sumária seria o meu primeiro impulso face a Abraão. Não lhe perdoo o fanatismo. Não lhe perdoo a falta de amor à prole. Porque a prole é divina, a nossa prole e a de todos os outros. Esse é o grande princípio espiritual, mais do que religioso. Peguem em todas as doutrinas, enquanto dogmáticas, e brinquem aos soldadinhos de chumbo. Eu sou livre mais o meu deus. E Saramago é português!
Lucinda Gray
sexta-feira, 9 de julho de 2010
Q.I.
É contigo que alinho todas estas palavras no papel, são tuas todas as sílabas que articulo. Tu sabes quem eu sou e sabes o que tu és – e é a ti que agora me dirijo: Eras tu e estavas sempre lá, quando te despias por detrás dos biombos de decência que erguíamos para nos esconder exibicionistas. Eu sei que eras tu, quando me davas as mãos dadas por entre os dedos. Estou certo que eras tu. Sim, é contigo que falo! Foste sempre tu que estiveste por cima da minha cabeça e te espalhavas pelo meu corpo, para violar os meus pensamentos mais íntimos. Retiravas de todas as minhas vidas acontecidas realidades que alguma vez sequer pude viver.
Eu nunca fiz nada do que escrevi ou descrevi, nunca viajei senão pelas estradas de além-corpo. Sou apenas um daqueles geógrafos que vive acomodado a uma secretária a arrotear palimpo-sextos cartográficos – saio apenas uma vez por dia abelha da minha célula hexagonal, para ver o dia e colher o pólen do sol – e limito-me a descodificar e a inserir nas cartas-brancas a informação das tuas vagas explorações, apenas o que me trazes. Tu viajas por todos os lugares por onde as minhas histórias te levam; eu limito-me a construir um mapa-alma inacabado de palavras intemporais, a partir do calabouço onde vivo. Sempre só na minha solidão, aliás, a única companhia que hoje suporto. (Logo hoje... que me apetecia ver gente, gente viva, mas o dia apenas me traz o ruído daquela corrente de ferro que o monstro arrasta).
Tu estavas lá, estiveste sempre lá, viajaste por todos os lugares por onde fomos viajando à roda do meu quarto, nos mundos cartográficos que construo – e nem me dava conta de que me habitavas. Nunca te podia ter quando te queria e só te podia querer porque não te podia ter, só para mim, para ficarmos os dois assim conchegados. Por vezes, vinhas sorrrateira instalar-te nos meus sonhos, dormir comigo, acordar ao meu lado, com todos os detalhes vividos ainda na cabeça em febre-memória. Gosto da tranquilidade com que vais e voltas, com que te acercas de tudo o que toco para eu te poder tocar a ti. Tu estás em todo o lado, em todos os momentos que preenchem o espaço cheio da minha solidão, és a única companheira com quem nunca estou só a ver-me passar.
Quando me deito contigo e não penso em ninguém, penso logo em alguém e nunca estou acordado, porque não posso adormecer senão nos teus braços. Tu e a memória tão sobrevivida da minha Mãe estão por todo o lado, em todos os mecanismos do meu pensamento, são corrente à volta da minha roda dentada mental. Quando ela partiu acomodaste-me no teu regaço e desfiaste estórias por entre carinhos que outrora foram tão reais. Estes traços fundos que ostento na alma, são aquela verdade crua que foi viver para o céu e me deixou só contigo. Desgraçadamente, só contigo. Sabes que não o digo porque não goste de ti: poderíamos até viver todos juntos, não fosse a terrível tendência de a bruta realidade se apoderar de todos os nossos espaços íntimos e queridos, de se impor, de cortar o ténue e longo fio que nos liga aos momentos eternos.
Hoje não te senti em todo o dia, teimaste em andar por lá e deixar-me aqui fechado com a minha austera e cruel verdade. Trabalhei todas as horas mortificadas para esquecer a tua ausência. Esperei pelos sonhos até adormecer. Sonhei contigo o que tu quiseste sonhar comigo, adorei cada imagem até à liberdade. Quando chegaste à noite e pousaste sobre mim adormecido no sofá, entraste vestida de tule nos meus sonhos, invadiste todos os mesus espaços. Ainda me lembro como te despias ontem, de como soava o langor da tua chamada, de como me despias vagamente e me envolvias na tua névoa. Como me dava e me contorcia, e gemia, e te pedia mais. Beijávamo-nos... beijava-nos a realidade também, beijávamo-nos os três. Tu foste embora, e ela perguntou-me se tinha gostado dos teus beijos. E eu perguntei-lhe também: confessámos ambos que sim e beijámo-nos de novo, fundo, até te sentir.
Ao cabo da vida, sem medos, acabamos sobrevindos em catarse e adormecemos cansados de projectar como seria o que jamais chegou a ser. Cansados de tudo, vivemos e morremos sempre partida para voltar, deixando no rasto da nossa sombra um anúncio de interno retorno. Tu sobrevives e viverás até no fundo do buraco negro mais fundo, no abismo, no lugar onde vivem os que mergulham na felicidade eterna. Nasces na palma da mão nossa e só morres no momento de a crisparmos impotentes, de cingirmos o nosso mundo-imo sem te chegar a sentir. Vives realidade em ti mesma, vais e voltas a nós, até ao segundo final. Sempre a nossa,
Querida Imaginação...
Joshua M.
quinta-feira, 8 de julho de 2010
Le Nez
Atiraram-me uma pedra à cabeça. Ainda não consegui estancar o sangue. Atiraram-me com tanta força que pensei que morria. Corri para ti o mais depressa que pude. Procurei-te como um louco. Fui a todos os lugares que imaginei serem dignos da tua presença. Bati à porta de todos os nossos amigos, de todas as nossas fantasias. Já cansado, encontrei-te no lugar do jardim onde levas a passear os teus livros. O chapéu não te permitiu ver que eu – por baixo – morria derrotado pela cobardia de um ciúme. As minhas palavras soaram-te estranhas, como se um adeus estivesse a pegar nelas, tentando acalmar a dor que ainda não sabias. Mas a dor não é tua... É minha. A despedida fez-se assim, ansiosa, aos repelões, de olhos cheios de lágrimas. Quis dizer tudo em tão pouco tempo e o tempo traiu-me a vontade. Quis dizer o amor que senti durante toda a minha vida. Como o amordacei com medo de acordar do único sonho que guardei para mim, vestindo a roupa de quem os teus olhos procuravam no escuro.
Não é fácil, ser feio, ver-te beijá-lo naquela varanda.
Extraordinária ou virtuosa fosse a minha palavra, e os teus olhos ouviriam sempre mais que os teus ouvidos. Triste mundo o que me silencia. Triste vontade a minha de querer seu teu, assim como sou.
Hoje atiraram-me com uma pedra à cabeça. Da cabeça ao coração foi um instante. É sempre assim. Sempre...
DuArte
quarta-feira, 7 de julho de 2010
Verdade
Acordo no jardim das Hespérides. Pestanejo contra o nascer do sol e sinto o aroma intoxicante de mil flores. Caminho sobre a erva espessa com pés desnudos absorvendo a luz líquida dos sonhos. Procuro a árvore bodhi. Demónios tentam-me com os prazeres da carne. Anjos tentam-me com dádivas do espírito. Ilusões. Nada mais que fumo e espelhos.
Finalmente encontro o príncipe Gautama, o Buda, que me indica o caminho para a árvore bodhi. Prontamente ignoro o seu conselho e vejo-o desaparecer. Outra coisa não seria de esperar. Gautama já morreu faz muito tempo.
Proucuro um lugar tranquilo, como quem procura o lugar para um piquenique ou para estender uma toalha de praia. Sento-me e assumo o lótus.
A árvore bodhi crescerá aqui.
Jonathan Strange
terça-feira, 6 de julho de 2010
Palavras Versadas
.g
gosto da tua onomatopeia enleada
no som dos cabelos da alvorada
gosto da tua fúria quando cavalga
gosto do fato-de-banho na pele semeada
do algo de alguém da curva da alga
gosto da voz salgada
da mão fechada com o mar na palma
gosto da ideia turva da vida impensada
gosto que ponhas os olhos na debandada
dos pássaros que não fingem ter alma
gosto de gostar de voar
e mais nada
Bill Engates
domingo, 4 de julho de 2010
Provocatio
Cor
Arranco o meu καρδιά que já secou e mando-o para uma oficina de restauro. Como peça em desuso, ofereço-o a um museu para que fique na memória dos que gostam de esquecer.
Berenice Greco
sábado, 3 de julho de 2010
Crónica Benzodiazepina
Bendito tempo perdido
Perder tempo não é nada de grave. A vida não é uma corrida, mas um tiro ao alvo: o que conta não é a poupança de tempo, mas a capacidade de descobrir um centro. Senti isto a vida toda. Raramente senti pressa, urgência no resultado dos meus actos, mas sempre me preocupei com os objectivos dos mesmos. Ganhar dinheiro para quê? Para comer? Sim. Para viajar e assim conhecer o mundo que nos circunda? Sim. Para poder sustentar filhos? Sim senhor! Dinheiro por dinheiro? Não. Porque o que dedico a esse ganho é muito mais caro do que o que recebo ao fim do mês. Não há dinheiro que pague o tempo que poderemos facultar a um ofício que não nos preenche. Para descontarmos para a Segurança Social? Bem…não sei se já ouviram falar disso, mas… a Segurança Social está em falência. Assim, não resta outra possibilidade se não encontrarmos prazer naquilo que desenvolvemos profissionalmente, pessoalmente, familiarmente. Mas como não somos, infelizmente, cristalinos como água, ao longo da vida podemos chegar várias vezes à conclusão de que aquilo que julgávamos ser o ideal para nós afinal não o é. Ou que deixou de o ser. Isso não é uma desgraça. Desgraça é insistirmos num erro. Maior desgraça, ainda, não termos consciência de um erro. Não nos sentirmos! Pensar que um erro foi uma perda de tempo é uma imbecilidade. É com os erros que se aprende. Estaremos a dizer que a nossa própria formação foi uma perda de tempo? Creio que para alguns é mais fácil encontrar um centro. Talvez imbuídos por desejos colectores ou egocêntricos. O meu centro nem sempre foi claro, nunca muito prático. Quis, e quero continuar a conhecer-me, conhecer também quem para mim importa. Essa curiosidade não tem um carácter romântico, pode até ser bem cruel, porque nós não somos perfeitos. Apreendermos os nossos defeitos, as nossas limitações, não é uma tarefa simpática. No que se refere a quem amamos, poderá ainda ser pior. Contudo tem sido este meu nublado centro que me tem mantido interessada na própria vida. Neste processo redescobri um centro. Conquistar o prazer pleno de estar viva. Prezei a Paixão por tudo. Tudo por Paixão. Prezei o Amor. Tudo pelo Amor. Apercebi-me da profunda existência da Dor em ambos os processos. Sempre presente, a Dor. Nada provoca tanta dor quanto a Paixão e o Amor. Não a reneguei. A dor para ser conquistada e assim, superada, deve ser vivida, atravessada. Nunca a deveremos renegar, recalcar. Fugirmos dela é dar-lhe o poder de a perpetuar. Hoje, considero o Prazer o mais sublime objectivo da nossa vivência. Não falo só dos prazeres mundanos. Refiro-me ao Prazer de Amar e de sentir a Dor que acompanha esse amor. Prazer de sofrer por uma Paixão. Prazer pelo prazer no desempenho das mais pequenas tarefas que tenhamos entre mãos. Prazer no desafio de ultrapassarmos uma situação difícil. Prazer no amadurecimento do nosso corpo, da nossa mente. Prazer na visão, no tacto, no paladar, na audição, no olfacto.
Se perdi tempo ao longo da vida em busca de algo tão simples, bendito seja o tempo perdido.
Lucinda Gray
sexta-feira, 2 de julho de 2010
JUÍZO PROSAICO
Não sei se a juíza me conhecia de algum imbróglio anterior, mas desta vez estava a ser julgado, reincidente, por ter roubado um pão a um pobre e, com esmeros de perversidade, lhe ter deixado por troca um livro de poesia. O caso estava feio, repetia-me o meu advogado dizendo-me que, ainda o mês passado, se havia condenado alguém por somente haver roubado o pão. E por tal nefando crime foi despedido da fábrica têxtil, onde já era pegador de fios e relegado a administrador de uma empresa pública de esterilidade de ideias, a qual, aliás, é hoje uma das mais conceituadas. Não teria muitas hipóteses de me safar sem uma pena algo pesada, dada a gravidade da minha conduta. Seria fácil ao jurista encarregue de me acusar fazer prova de que estavam reunidos todos os pressupostos objectivos e subjectivos para uma condenação por crime doloso – o que, com o meu azar e um juiz severo, poderia catapultar-me para alguns anos de degredo à cabeça de uma secretaria de estado ou de uma direcção geral, ou até a algum cargo de eunuco na presidência. Tentei fugir, para a via láctea, para o desusado sistema solar, tentei, mas com o novo terrorismo interestelar e os centuriões da Guarda Sol sempre em campo magnético depressa me descobriram, íman colado aos metais precisos, quando tentava convencer uma estrela a transformar-se em palavras. A juíza, mulher de ar ríspido e olhos perscrutadores, de palavras certas e conceptualizadas, perpassava-me com a sua sabedoria retroactiva. Era um daqueles juristas que havia memorizado mais de três milhões de glosas e possuía na sacola uns milhares de comentários inéditos sobre a lei do estilicídio poético corrente sobre as cabeças vagas. E depois de um longo exercício de prognose póstuma, em que se questionou: se o arguido não houvesse deixado o livro de poesia, ainda que tivesse levado o pão, tornaria a vitima menos infeliz? Pergunta a que não teve dúvidas em responder, em considerar que o principal prejuízo advinha da leitura da poesia, pois ao abandonar o livro aos olhos da vítima o arguido sabia que, com a sua conduta, o tornaria provavelmente feliz, o que lhe iria provocar danos irreparáveis. Compenetrada e segura que asseguraria a habitual justiça, a severa magistrada pronunciou sábia e incisivamente a decisão: Assim, pelos factos descritos e com base nos fundamentos legais citados (matéria a que vos poupo, por ser pesadamente fastidiosa e de conteúdo impenetrável para leigos), decido condenar o arguido a uma pena inequívoca de prestação serviços em favor da comunidade à frente de uma secretaria-geral de relevante importância no aparelho do Estado, devendo este retractar-se diariamente na praça política como um mero prosaico, durante todos os bons anos da sua vida, sendo ainda o mesmo obrigado a proclamar em voz off, perante todos os indigentes, que a poesia não existe, nem nunca existiu, nem é conhecida de quem quer que seja abaixo do astro mais meridional da galáxia. E o aresto terminava com a seguinte determinação: Custas revertem a favor da “Associação dos Indigentes”. Cumpra-se.
Só por curiosidade, o facto provocou os veementes protestos da “Associação para a Desconstrução Prosaica”, por não ter sido contemplada e judicialmente indicada para comungar nas custas, mas o incidente foi ultrapassado quando aquela entidade foi autorizada a realizar um novo auto de fé com livros de poesia surrealista do início do século XX. E assim, de juristas contra a poesia, se fez da justiça dos homens um negócio de alquilaria.
Joshua M.
quinta-feira, 1 de julho de 2010
Flashback
Não há nevoeiro. O dia é de sol mas está fresco porque ainda é cedo. Sou muito mais novo, vestido com calções, t-shirt e sapatilhas sem meias. Dei por mim sentado num banco de cimento na estação de Campanhã, com a toalha de praia a fazer de cachecol, todo encolhido, à espera do comboio para Espinho. Levanto-me e vou para o princípio da plataforma, onde o sol já queima, para me aquecer. Encho os pulmões de luz enquanto penso num plano para te trazer ao mundo. Talvez aconteça hoje, na praia, num jogo de cartas onde tenhamos que piscar o olho um ao outro, ou então, surgirás de uma troca de palavras inocentes, durante a indecisão de mergulharmos ou não na água gelada.
De volta à estação, as mães e os filhos, armados de baldes e pás, levantam-se da longa fila de assentos, animados com a chegada do comboio. Ainda não se vê mas já se anuncia no zumbido dos carris. Levo a mão ao bolso, para confirmar não ter perdido nada. Viajo leve; sem carteira, sem comida; um bilhete de ida e dinheiro suficiente para a viagem de volta.
O comboio está à pinha. Percorro as carruagens repletas de férias, raparigas bonitas mais despidas do que é costume, toalhas aos ombros, cestas entre pernas, as gargalhadas incontidas de um menino a brincar com o chapéu do avô. Procuro um lugar para me sentar. Na carruagem da frente, descubro três turistas estrangeiras a partilharem dois bancos, frente a frente. Sento-me no lugar vazio junto à janela, virado para a cabina do maquinista. A pele das coxas descobertas arrepia-se com a napa gelada do assento. Olho para a janela, para outro comboio a arrancar da estação, com a sensação de estarmos nós a avançar. Mais um pouco e é a nossa vez. Um ligeiro empurrão e arrancamos decididos, rumo às praias.
Não esperem que meta conversa com as personagens loiras. Numa outra história perguntarei de onde são e se estão a gostar da minha cidade, ao que a mais baixa responderá que sim e que são holandesas. Lancharemos todos no dia seguinte.
Adoro andar de comboio. Adoro o bater das rodas nas junções mal acabadas dos carris. Tam-tam, tam-tam, tam-tam. A luz rasante do sol nascente enche de brilho o alumínio da janela, os cabelos loiros da Joyce, a paisagem rápida nos meus olhos. A vida acelerou... Tam-tam, tam, tam.. Gaia, Madalena, Francelos, Aguda, Granja. Tam-tam, tam-tam, tam-tranc.. Não bateu certo. O som não bateu certo.. O comboio trava apressadamente antes do tempo, na recta a seguir ao grande hotel. A carruagem inquieta-se. Não é uma paragem que se faça, assim tão perto da praia, ainda distante da estação para que possamos ir a pé. As crianças sentadas ao colo, perguntam às mães o porquê de tamanha injustiça, apontando para o areal no horizonte. As turistas holandesas, trocam palavras arranhadas, sem saber o porquê. Posso jurar que o som há pouco não era de ferro a bater em ferro. Abre-se a porta do maquinista. Descobrimos que é branco. Um branco demasiado branco para ser vida. O senhor da camisola com um símbolo da CP, olha para nós a pedir perdão, a chorar, horrorizado com a imagem de uma menina a correr atrás de um cão, para o salvar de ser atropelado. Ela não se salvou. O maquinista mantém-se quieto, de pé no lugar da porta, ajoelhado a explicar-se, desculpando-se com a máquina infernal, imparável, que ele não conseguiu dominar a tempo. Talvez nem queira dizer nada com aquilo. Talvez o faça para ocupar a cabeça, empurrando para longe o filme da figura franzina a correr cega na boca do inferno, até desaparecer no enorme vidro para os meus ouvidos, naquele tranc nada misericordioso.
O meu lugar também não é fácil, a suar frio, petrificado pelo som, envolto em gritos de outros passageiros, a imaginar as mães nas minhas costas apertarem os braços dos filhos, cheias de dor pela dor de outra mãe - Meu rico filho!!
Levanto-me, fingindo-me forte, e salto para a gravilha grossa.
(Não olhes para trás.. Não faças isso.. Não queiras ver a multidão à procura do que restou. Um cão à procura da dona, a pedir-lhe desculpa, a cheirar pedaços demasiados pequenos para segurar-lhe na trela. Não olhes para a roda de ferro.. O som dos ossos a serem triturados, espalhados em mil partes ao longo dos barrotes queimados, manchados de sangue. Não olhes para a frente do comboio... Não queiras imaginar o medo nos seus olhos, perante aquela parede de aço demasiado alta para ser um engano.)
Salto da linha de comboio para as dunas que não devo pisar; para a praia, de sapatilhas nas mãos; para a areia húmida, os pés na água, a pensar num outro plano para te trazer ao mundo, que este não funcionou. Não resisto olhar para trás, para o rasto de pessoas que me persegue, prontas para mais um dia de férias.
O comboio continua parado, deserto de ideias, envergonhado por não saber fazer mais nada que não seja andar para a frente, ao sabor das pessoas.
Dedicado a ti,
Menina sonhada, a quem não tive tempo de pintar um rosto, nem dei um nome.
DuArte
quarta-feira, 30 de junho de 2010
O Padeiro Anarquista
Sem mais nem menos, a casa despejou-o na rua, a correr. Estava atrasado, de facto. Correu muito e depressa; tal como quem precisa de correr muito — por ter pressa, naturalmente. O boné queria desertar, que estas modernices das velocidades não lhe agradavam. Não fora, enfim, a vetusta e assaz limitadora idade do homem, que o impedia de correr tanto e com tanta pressa como se impunha face à pressa que tinha, e o infiel boné teria mesmo ficado para trás, refastelado no chão, a ressonar como uma ignóbil cartola fanfarrona.
O homem corria, o boné resmungava. De repente, o homem parou. O boné silenciou-se, expectante, perscrutando indícios de convergência na sua pretensão de preguiça. “Grande merda! Esqueci-me do pão. Trouxe o saco vazio. Há que voltar para trás”. Agora movia-se ainda mais veloz, porque tinha ainda mais pressa. Afinal, será que um padeiro que se esquece do pão é um padeiro que se preze? — indagou-se. E enquanto cozia estes modestos pensamentos, a viagem fez-se, mas não em tão pouco tempo como ele gostaria, dada a pressa que tinha.
Discutiu e praguejou mundanices, mas por fim a casa lá deu a porta a torcer e cedeu, deixando-se uma vez mais inocular pela chave, pobre rapariga, conspurcada e infectada de cada vez que saía à rua. Sem desperdiçar tempo, avançou presto para a casinha do forno com a intenção de, em escassos segundos, pegar no pão, pô-lo no saco e voltar a sair porta fora.
“Grande merda! Mas onde é que eu o pus?!?”. Na verdade, não sabia, e havia razões para não saber: depressa se lembrou — porque tinha muita pressa, cada vez mais, esclareça-se — que não tinha feito pão. E o céu estava há momentos em trabalho de parto, já se viam os primeiros cabelos do Sol. Nascia rapidamente. Mas sem pressa, que o Sol nunca tinha pressa de manhã.
O pobre padeiro, a correr, com muita, muita pressa, juntou os ingredientes no bom-velho alguidar de barro; amassou-os; deixou-os levedar depressa, porque tinha tanta pressa, tanta pressa, e não queria que faltasse um pão sequer nas mesas da aldeia. Que era para isso que ele ali estava, há tanto tempo, na aldeia. “Grande merda! Ainda não acendi o forno. Já devia estar quente e ainda nem cá estão as vides. Bem verdade é que quanto mais depressa mais devagar”. Mas o forno lá se acendeu, ainda estremunhado, e o seu secretário, o fogo, lá começou a escrever à máquina sobre molhos de vides e magros pedaços de madeira. Enquanto dactilografava, apareceram os primeiros candidatos para a entrevista de emprego, ansiosos por virem a preencher a vaga aberta para o lugar de pão. Simples porções de massa amalgamada envoltas em farinha, os moçoilos de tez pálida lá iam ganhando coragem ante o seu interlocutor, majestoso fogo, que os inquiria, minucioso, severo, em cada milímetro. Por fim, abrindo os braços, algo paternal, lá os deixava sair, alimentando esperanças de que tinham boas possibilidades de serem aceites e que aguardassem por um contacto nos próximos tempos.
O homem despejava os pães para o saco, ainda a escaldar de excitação, num ápice. Que estava desesperado com tanta pressa e a manhã já ia quase a meio. Reunira, finalmente, tantos pães quantos precisava, mais coisa menos coisa. Abriu a porta, com pressa, que estava quase a sucumbir a tanta pressa.
Nessa altura, contudo, apercebeu-se de algo estranho: o melancólico sino da aldeia entoava badaladas repetidas, chamando o povo para a missa. “Grande merda! Pois claro! Que grande burro que sou! Hoje é Domingo, porra!”. Ontem fora sábado, amanhã talvez segunda-feira. E eis pão de hoje. Feito a correr, mas não à pressa, apesar da enorme pressa que o padeiro teve. Teve, que agora já não a tinha. Acabou. Já não tinha mais pressa. Voltou para o forno, deixou-se adormecer. Despertou a meio da tarde. Para não deixar passar a folga em branco abriu uma garrafa de vinho especial. E fez uma açorda.
Bill Engates
terça-feira, 29 de junho de 2010
Palavras Versadas
(TUDO É COMUM NESTE LUGAR)
A noite pertence-me por inteiro
Comento interiormente a solidão
a forma de elaborar o poema
os mecanismos refinados da inspiração
e quando chego aqui penso
no poema que me foi encomendado
pelo espírito santo para amanhã
e que ainda está por elaborar
Eis-me pulando no quarto
em busca duma folha branca
e a esferográfica recusando-se
a escrever e já não estou
no quarto mas num bar com um grupo
de amigos divertindo-se e eu angustiado
com o poema que não vem
Neste momento o espirito santo
está prestes a chegar ao purgatório
numa viagem de transistor
E as palavras brincam umas com as outras
dançam bebem riem sempre fugindo de mim
Eis que uma mulher me chama para dançar
me oferece uma cerveja se deita comigo
na cama e me sussurra num beijo
“os poemas são todos iguais”
João Belo
domingo, 27 de junho de 2010
Provocatio
Objectiva Fiel
Descobriu a sua verdadeira orientação quando tirou a primeira foto a preto e branco a uma amiga colorida...
K. Tan
sábado, 26 de junho de 2010
Em seu nome recuso
Aqui já não há razão, tão pouco rima. Em seu nome, recuso continuar a defender-me. Nunca foi preciso. Para quê explicar-me? Explicá-lo? Sou transparente, assim nublada. Finalmente encarnei verbalmente o Inverno, tão necessário à Primavera. Desejo inteligência para encarnar, conscientemente, essa dinâmica. A da morte e vida. A vida em morte e a morte em vida, eterno namoro. Essa repulsa, esse medo.
Voar que nem folha de Outono por essa dinâmica cósmica. Borboleta fora do tempo. Fútil? Louca? Desadequada? Por que não? Mas também… por que sim?
Por que chão vos tendes tão seguros se o próprio mundo onde esse chão que vos segura flutua no espaço e gravita em torno de uma estrela? Repito. Em torno de uma estrela. Moribunda, dizem. Pudera! As estrelas são como as fadas… É preciso acreditar.
Que chão é esse que vos sustém, e vossas regras, de forma tão impiedosa, tão implacável? Estarão assim tão seguros do certo e do errado?! Ou essa segurança é equivalente à firmeza desse mesmo chão? Esse, o flutuante no espaço negro de um universo em expansão?
Já ninguém mata ninguém com cicuta. Fomos vetados a insectos do espaço! Esqueletos vaidosos! Tolos.
Ah! Tomara a inteligência de uma rã, que ao coaxar me embala, me adormece. Aceito a dádiva com gratidão de irmã. Sei que faz ela mais por mim do que muitas mães por seus filhos.
Vivo na Lua, dizem-me aqueles que me amam. Uns desejando que lá me mantenha, pela salvação de suas almas, outros desejando que desça à sua terra, ao seu chão, para que sobreviva.
Lucinda Gray
sexta-feira, 25 de junho de 2010
Para Lucinda Gray
Psico-Portrait (ou o que ela teria dito se houvesse escrito este texto)
Naquela casa branca da lagoa respirava sempre o ar que era o meu. Respirava sempre oprimida contra o mundo, sempre contra tudo – contra esta lagoa, contra esta ilha, contra este mar, contra mim mesma. Sempre eu, contra toda a corrente: água e terra e fogo, todos contra todos. Sempre eu, a sós comigo, a ter de vencer muros e marés, estendendo o olhar para além dos prados limitados, quadrados verdes vivos com muros negros, num horizonte de verde manchado, sem fundo nem distância. O longe e a distância restam prenhes de significados quando o nosso horizonte se abate sempre sobre a mesma linha do mar em todas as direcções, num dia os barcos vão, num outro voltam, sempre um ponto que cresce ou mingua, lá ao fundo na paisagem.
Estava só, quase só, apenas eu entre mim e eu, estabelecendo ténues teias de contacto com o mundo: soprando um insecto, tocando uma flor, pisando as ervas, uma palavra ou duas aos que vivem comigo. A solidão mede-se pela capacidade de sairmos de nós, de nos envolvermos com o mundo, sem que ele se envolva connosco em identidades obscuras.
Por isso, In ilo tempore preferia estar só. Não se trata de resolver aqui, se gosto ou não gosto de estar só, já expressei por escrito, aliás, a minha preferência por estar só. Não me quero contradizer, mas já vos disse também que estar só não é obrigatoriamente só. Comigo viviam fantasmas ciclopes, monstros inimagináveis que transportava para todo o lado, numa sacola de estudante que trazia breve a tiracolo.
Comigo vivia eu e um mundo lá fora, onde tinha de ir comprar barato o conforto enganador de um mero cigarro, mover-me sem falar, dizer apenas a audácia de uma única palavra com um único objectivo, ou apenas um gesto estereotipado e cumplíce de dois dedos esticados com as polpas sobre os lábios. Nesse momento uma das minhas asas de solidão roçava delicadamente no topo mundo, que rodava à velocidade da minha impaciência – uns dias turbilhão, outros dias roda de mó lenta a arrastar o grão. Comigo viviam marés mansas e vagas tão poderosas, imagens tão fortes, que eram temidas pelos homens e pelas baleias, que fogem até ao fundo do mar para se acoitarem das tempestades e dos homens.
Quando abria a janela da minha alma, a rua estava fria como as casas por fora, sempre com o céu a desabar estilicídios contínuos sobre as cabeças torturadas. O mundo era uma cela fechada, vista de fora para dentro, um pequeno compartimento acanhado visto da imensidão do meu recolhimento. O mundo ia mudando de cada vez que abria a janela e o ontem nunca era igual ao amanhã. O mundo ia ficando cada vez maior. O tempo estava cada vez mais largo. Sabia que ainda não podia sair de mim e entrar naquele mundo, tinha de esperar para crescer e deixar crescer o tamanho do mundo.
Estava quase a chegar a primavera, digo isto pelas contas do tempo, porque o sol não chegara ainda para temperar os dias. Às vezes, quando sufocava ali fora fechada e isolada do interior do mundo, sentia ganas de voar, de abrir a janela mais alta de todas a quimeras que construí e saltar desamparada sobre o mundo. Este pensamento perseguiu-me durante todos os sonhos, passou a visitar-me na realidade de todos os dias, depois tomou o tempo de todas horas, tornou-se cada vez mais presente no meu mundo, até que tomou completamente conta de mim.
“Um dia, enchi o peito de ar, cobri-me com um xaile e sai para a rua. Quem me poderia impedir?”
L.G.
Joshua M.
quinta-feira, 24 de junho de 2010
sinais
Sincronismo, destino, acasos que não são coincidências... Os livros e os gurus da viragem espiritual do mundo ao alto desdobram-se em explicações e relatos do quotidiano que nos sugerem uma ordem das coisas. As palavras progressivamente vêm significando que tudo pode ter uma explicação, aquela que poderá residir num Universo pré-programado apesar do caos em que co-existimos. No meio de tudo ficam os Eu's. Nós. Imersos num mundo que comunica desde que nos levantamos até que adormecemos (com o bónus de sonhos para quem abre a porta ao subconsciente), munidos desse livre arbítrio que nos lixa o juízo (a mim pelo menos lixa). Ultimamente, sinto que vivo numa espécie de teoria da conspiração, um consórcio de sinais e alertas que bombardeiam as minhas convicções e as minhas decisões (algumas adiadas há muito tempo), no cinema, na página de um livro que abro ao acaso (?), num telefonema, num encontro casual (?), na experiência de um amigo, na rua, nas lojas... Quase enlouqueço entre o riso e a expectativa que me provocam. Mas quando os sinais assentam no meu ombro, fica um resíduo de solidão. Sou incapaz de os sacudir, mas também não sei que lhes faça.
Ana Santiago
quarta-feira, 23 de junho de 2010
sem-abrigo
Ter frio. Ter frio de tanta fome que sinto. Julgava que os sentidos não se ligavam assim, a fome levar ao frio, a sede levar à cegueira, a falta levar ao medo. Pensei... será? “Pensei será?” vezes a mais. Pensei de mais. Hoje estou sem estórias para contar. Costumavam sentar-se crianças à minha volta, ávidas de sonhos, não se importando com a chuva, não se importando com o frio, nem mesmo se importando com a fome. Olhava-las bem dentro dos olhos, bem fundo na alma, e lia-lhes as fantasias que assaltam o sono, lia-lhes a vontade de saltar de arco-íris em arco-íris, a textura do algodão doce, a forma frágil de que é feito o onirismo infantil. No tempo dos fantoches, dos carros de marionetas pelas ruas, de palhaços moldando balões, de risos em feiras, de pipocas coloridas. Nos meus tempos de circo. Nos meus tempos de jovem. Nos meus tempos sem frio.
Vasculho qualquer coisa no lixo. Apercebo-me disso porque um pedaço de lata corta-me a ponta do dedo, de outra forma nem me lembraria. É já tão automático ser vagabundo que nem reparo bem no que faço. Encontrei uma manta, meio rota e encardida, insuficiente para afastar o frio polar que se instala em estalagmites de orvalho, mas que terá de servir. Às vezes pergunto-me como seriam os tempos que passava os serões à lareira, em casa da minha avó, nessa época em que os sonhos saltitantes ainda eram meus também. Já não me lembro. E juro que me parece que falo de outra pessoa, um outro gaiato a quem lia os sonhos, a criança que nunca fui.
Encontro um cartão rugoso pelo chão e por momentos quase me sinto feliz. Curiosa a simplicidade da alegria de quem nada tem. Acho que envelheci, acho que foi por isso que aqui vim parar. Acho que as crianças de hoje deixaram de sonhar, saem do ventre materno logo com 15 anos, reguilas e malévolas. Acho que é por isso que secaram as minhas fábulas e contos, que os reis do Oriente por lá ficam e as princesas adormecidas não mais são despertadas. Acho até que é por isso que já sei o que significa sentir os ossos gelar, sentir a pele encarquilhar de frio, sentir o tremor de um medo de fim. Acho que é por isso que não sei mais o que é ter amigos, o que é ter família, o que é uma casa com lareira e risos estridentes de criança. Acho que é por isso que o meu circo partiu para outras bandas. Acho que é por isso que não queriam tantos contadores de estórias. Acho que não queriam velhos, e não tiveram coragem de o dizer. E como censurá-los? Já não há crianças para ouvir os velhos, já não há sonhos que se renovam de geração em geração, ensinamentos que a idade traz e acendem labaredas de curiosidade nas almas naive dos rebentos de uma nova era.
Pego no meu cartão e na minha manta, encontro um canto qualquer de pedras sozinhas onde ninguém saiba o meu nome, deito o corpo cansado de frio e sonho. Sonho como a criança que fui. A última criança num mundo de velhos em corpo jovem.
Virginia Machado
terça-feira, 22 de junho de 2010
Palavras Versadas
CLUSTER
e na luz inadequada se move o teu corpo como
algo por dizer,
projectante sem confundir o interior da mão
com um rosto que baixou ao subsolo do silêncio.
e imaginarás algo.
e pegarás no teu ponto. na tua vírgula.
gritarás um verso sem que as palavras individuais
o notem, o oiçam a perfurar o seu
próprio verbo.
e arremessando esse ponto, e essa vírgula, ambos
em direcção ao céu introspectivo e especulativo
das cores que lhe concretizam a profundidade, ganharás
tempo; tempo para que o verso se espalhe a partir
do seu gomo infindável,
contamine o eco difuso da mão de vidro, guarde
o bom-senso de um revólver que espera atento
a morte que falta a um corpo.
e não tarda regressarão caindo com a mesma força
que aquela que usaste para cima: o teu ponto magnífico,
a tua vírgula com material e forma de lupa,
como pregos por cima do teu verso com
formato de raio e cuidado, com laringe de flecha e erro,
com lisonjeio sobre o tempo invertebrado.
quando caírem sobre ti, sobre o teu regresso íntimo,
saberás por onde continuar, e sobretudo: onde parar.
Sylvia Beirute
domingo, 20 de junho de 2010
Provocatio
a porta
Desenho-a sempre que quero sentir-te. Encosto a minha cabeça e oiço-te respirar do outro lado. Não a abro. Não a devo abrir. Quando quiseres entrar pega num giz ou num lápis de carvão e desenha-a com as dobradiças a rangerem junto às minhas.
A.S.
sábado, 19 de junho de 2010
Crónica Benzodiazepina
A Força Do Sorriso
Há momentos em que a vida nos veste com uma roupagem que não é nossa. Veste-nos com circunstâncias onde não nos revemos por um só segundo. Com um vestido em crochet, urdido por uma tia afastada, com quem não simpatizamos e cuja escolha cromática abominamos, mas que, por sermos pequenos, somos obrigados a vestir. Ninguém sabe que sentimos cada volta daquela agulha sobre a nossa pele, que sentimos o efeito nefasto de cada cor escolhida no diafragma dos nossos olhos, mas… é essa a tela que nos cobre o corpo. Olhamos para o espelho e o que persiste é aquilo que nós sabemos ser e não a forma como parecemos. Olhamos para a vida, certos de que somos quem somos, independentemente de como somos obrigados a agir, ou a não agir, que é igualmente uma acção.
Nestas alturas, muito depende da certeza de quem somos. Do quanto estamos certos de estarmos certos e da nossa capacidade de estarmos certos disso mesmo!
Marguerite Yourcenar escreveu “a morte, para me matar, vai ter que ter a minha cumplicidade”. Pois acredito que a vida, para nos quebrar, tem que contar com a nossa cumplicidade. Mesmo quando as coisas não nos correm de feição, enquanto conseguirmos manter um sorriso, estamos a ganhar. Estamos a sorrir com a noção que o tempo sara tudo (ou quase tudo). Sorrimos, porque não permitimos que o negro que cobre o céu ou o corpo, nos apague a certeza do sol que se esconde por detrás desse manto ou da energia que se acumula no nosso interior.
Alguns, talvez distraídos, ou pouco experientes em matéria de dor, poderão pensar que um sorriso, em certas circunstâncias, será uma demonstração de inconsciência. Eu interpreto-o como uma demonstração de força.
Tenho vislumbrado, esse sorriso, em muitos rostos marcados.
Em frente à minha casa há um discreto jardim público aberto vinte e quatro horas. É um jardim muito bonito, pouco visitado. Ao anoitecer, da minha janela, vejo os sem abrigo a chegarem, para lá pernoitarem. Vêm um a um. Chegam silenciosos, caminhando devagar, sem stress. Também eles, discretamente. Muito raramente falam entre si. Mas, por várias vezes, já os vi sorrir.
Lucinda Gray
sexta-feira, 18 de junho de 2010
HOMENAGEM A JOSÉ SARAMAGO
O CENTAURO
Vencido por uma fadiga de séculos e milénios, o cavalo ajoelhou-se. Encontrar posição para dormir que a ambos conviesse, era sempre uma operação difícil. Em geral, o cavalo deitava-se de lado e o homem repousava também assim. Mas enquanto o cavalo podia ficar uma noite inteira nessa posição, sem se mexer, o homem, para não mortificar o ombro e todo o mesmo lado do tronco, tinha de vencer a resistência do grande corpo inerte e adormecido para o fazer voltar-se para o lado oposto: era sempre um sonho difícil. Quanto a dormir de pé, o cavalo podia, mas o homem não. E quando o esconderijo era demasiado estreito, a mudança tornava-se impossível e a exigência dela ansiedade. Não era um corpo cómodo. O homem nunca podia deitar-se de bruços sobre a terra, cruzar os braços sob o queixo e ficar assim a ver as formigas ou os grãos de terra, ou a contemplar a brancura de um caule tenro saindo do negro húmus. E sempre para ver o céu tivera de torcer o pescoço, salvo quando o cavalo se empinava nas patas traseiras, e o rosto do homem, no alto, podia inclinar-se um pouco mais para trás: então, sim, via melhor a grande campanula nocturna das estrelas, o prado horizontal e tumultuoso das nuvens, ou o sino azul e o sol, como o último vestígio da forja original.
O cavalo adormeceu logo. Com as patas metidas entre as espadanas, as crinas da cauda espalhadas pelo chão, respirava profundamente, num ritmo certo. O homem, meio reclinado, com o ombro direito fincado na parede da vala, arrancou alguns ramos baixos e cobriu-se com eles. Em movimento suportava bem o frio e o calor, ainda que não tão bem como o cavalo. Mas quando quieto e adormecido arrefecia rapidamente. Agora, pelo menos enquanto o sol não aquecesse a atmosfera, iria sentir-se bem sob o conforto das folhagens. Na posição em que estava, podia ver que as árvores não se fechavam completamente em cima: uma faixa irregular, já matinal e azul, prolongava-se para diante e, de vez em quando, atravessando-a de uma banda para a outra, ou seguindo-a na mesma direcção por instantes, voavam velozmente os pássaros. Os olhos do homem cerraram-se devagar. O cheiro da seiva dos ramos arrancados entontecia-o um pouco. Puxou para cima do rosto um ramo mais farto de folhas e adormeceu. Nunca sonhava como sonha um homem. Também nunca sonhava como sonharia um cavalo. Nas horas em que estavam acordados, as ocasiões de paz ou de simples conciliação não eram muitas. Mas o sonho de um e o sonho do outro faziam o sonho do centauro.
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O homem acordou. Sentia a angústia de não ter sonhado. Pela primeira vez em milhares de anos, não sonhara. Abandonara-o o sonho na hora em que regressara à terra onde nascera? Porquê? Que presságio? Que oráculo diria? O cavalo, mais longe, dormia ainda, mas já inquietamente. De vez em quando agitava as patas traseiras, como se galopasse em sonhos, não dele, que não tinha cérebro, ou somente emprestado, mas da vontade que os músculos eram. Deitando a mão a uma pedra saliente, ajudando-se com ela, o homem levantou o tronco, e, como se estivesse em estado de sonambulidade, o cavalo seguiu-o, sem esforço, num movimento fluido em que parecia não haver peso. E o centauro saiu para a noite.
Todo o luar do espaço se espalhava sobre o vale. Tanto era que não podia ser apenas o da simples, pequena lua da terra, Sélene silenciosa e fantasmal, mas o de todas as luas levantadas na infinita sucessão das noites onde outros sóis e terras sem esses e outros nenhuns nomes rodam e brilham. O centauro respirou fundo pelas narinas do homem: o ar estava macio, como se passasse pelo filtro duma pele humana, e havia nele o perfume da terra que foi molhada e agora devagar está secando, entre o labiríntico abraço das raízes que seguram o mundo. Desceu para o vale por um caminho fácil, quase remansoso, jogando harmoniosamente com os seus quatro membros de cavalo, oscilando os seus dois braços de homem, passo a passo, sem que uma pedra rolasse, sem que uma aresta viva abrisse outro rasgão na pele. E foi assim que chegou ao vale, como se a viagem fizesse parte do sonho que não tivera enquanto dormira. Adiante havia um rio largo. Do outro lado, um pouco para a esquerda, era a povoação maior, aquela que estava no caminho do sul. O centauro avançou a descoberto, seguido pela sombra singular que não tinha par no mundo. Trotou ligeiramente pelos campos cultivados, mas escolhia os carreiros para não pisar as plantas. Entre a faixa de cultura e o rio havia árvores dispersas e sinais de gado. O cavalo, sentindo o cheiro, agitou-se, mas o centauro seguiu para a frente, para o rio. Entrou cautelosamente na água, tenteando com os cascos. A profundidade foi aumentando, até chegar ao peito do homem. No meio do rio, sob o luar que era outro rio correndo, quem visse veria um homem atravessando a vau, com os braços erguidos, braços, ombros e cabeça de homem, cabelos em vez de crinas. Pelo interior da água caminhava um cavalo. Os peixes, acordados pelo luar, nadavam em redor dele e mordiscavam-lhe as pernas.
Todo o tronco do homem saiu da água, depois apareceu o cavalo, e o centauro subiu para a margem. Passou por baixo dumas árvores e no limiar da planície parou para se orientar. Lembrou-se de como o tinham perseguido do outro lado da montanha, lembrou-se dos cães e dos tiros, dos homens aos gritos, e teve medo. Preferia agora que a noite fosse escura, teria preferido caminhar debaixo duma tempestade como a do dia anterior, que fizesse recolher os cães e afastasse as pessoas para casa. O homem pensou que toda a gente naqueles arredores já devia saber da existência do centauro, que decerto a notícia tinha passado por cima da fronteira. Compreendeu que não podia atravessar o campo em linha recta, em plena luz. A passo, começou a seguir ao longo do rio, sob a protecção da sombra das árvores. Talvez adiante o terreno lhe fosse mais favorável, onde o vale se estreitava e acabava entalado entre duas altas colinas. Continuava a pensar no mar, nas colunas brancas, fechava os olhos e revia o rasto que Zeus deixara ao afastar-se para o sul.
Subitamente, ouviu um marulhar de água. Ficou parado, à escuta. O rumor repetia-se, diminuía, voltava. Sobre o chão coberto de erva rasteira, os passos do cavalo soavam tão abafados que não se distinguiam entre a múltipla e tépida crepitação da noite e do luar. O homem afastou os ramos e olhou para o rio. Na margem havia roupas. Alguém tomava banho. Empurrou mais os ramos. E viu uma mulher. Saía da água, completamente despida, brilhava sob o luar, branca. Muitas outras vezes o centauro vira mulheres, mas nunca assim, neste rio, com esta lua. Outras vezes vira seios oscilando, o tremor das coxas ao andar, o ponto de escuridão no centro do corpo. Outras vezes vira cabelos caindo para as costas, e mãos que os lançavam para trás, gesto tão antigo. Mas a parte que lhe cabia do mundo em que as mulheres viviam, era só a que satisfaria o cavalo, talvez o centauro, não o homem. E foi o homem que olhou, que viu a mulher aproximar-se da roupa, foi ele que rompeu por entre os ramos, correu para ela no seu trote de cavalo e depois, ao mesmo tempo que ela gritava, a levantou nos braços.
Também isto fizera algumas vezes, tão poucas, em milhares de anos. Acto inútil, apenas assustador, acto que poderia ter deixado atrás de si a loucura, se isso mesmo não aconteceu. Mas esta era a sua terra e a primeira mulher que nela via. O centauro correu ao longo das árvores, e o homem sabia que mais adiante pousaria a mulher no chão, frustrado ele, apavorada ela, mulher inteira, homem por metade. Agora um caminho largo quase tocava as árvores, e adiante o rio fazia uma curva. A mulher já não gritava, apenas soluçava e tremia. E foi então que se ouviram outros gritos. No virar da curva, o centauro foi parar a um pequeno aglomerado de casas baixas que as árvores escondiam. Havia gente no pequeno espaço em frente. O homem apertou a mulher contra o peito. Sentia-lhe os seios duros, o púbis no lugar em que o seu corpo de homem se recolhia e se tornava peitoral de cavalo. Algumas pessoas fugiram, outras atiraram-se para a frente, e outras entraram nas casas e saíram com espingardas. O cavalo levantou-se sobre as patas traseiras, encabritou-se para as alturas. A mulher, assustada, gritou uma vez mais. Alguém disparou um tiro para o ar. O homem compreendeu que a mulher o protegia. Então, o centauro ladeou para o campo aberto, fugindo das árvores que poderiam embaraçar-lhe os movimentos, e, sempre com a mulher agarrada, contornou as casas e lançou-se a galope pelo campo fora, na direcção das duas colinas. Atrás de si ouvia gritos. Talvez se lembrassem de persegui-lo a cavalo, mas nenhum cavalo podia competir com um centauro, como fora demonstrado em milhares de anos de fuga constante. O homem olhou para trás: os perseguidores vinham longe, muito longe. Então, segurando a mulher por baixo dos braços, olhando-a em todo o corpo, com todo o luar despindo-a, disse na sua velha língua, na língua dos bosques, dos favos de mel, das colunas brancas, do mar sonoro, do riso sobre as montanhas:
— Não me queiras mal.
Depois, devagar, pousou-a no chão. Mas a mulher não fugiu. Saíram-lhe da boca palavras que o homem foi capaz de entender:
— Tu és um centauro. Tu existes.
Pousou-lhe as duas mãos sobre o peito. As patas do cavalo tremiam. Então a mulher deitou-se e disse:
— Cobre-me.
O homem via-a de cima, aberta em cruz. Avançou lentamente. Durante um momento, a sombra do cavalo cobriu a mulher. Nada mais. Então o centauro afastou-se para o lado e lançou-se a galope, enquanto o homem gritava, cerrando os punhos na direcção do céu e da lua. Quando os perseguidores se aproximaram enfim da mulher, ela não se mexera. E quando a levaram, embrulhada numa manta, os homens que a transportavam ouviram-na chorar.
Naquela noite, todo o país soube da existência do centauro. O que primeiro se julgara ser uma história inventada do outro lado da fronteira com intenção de desfrute, tinha agora testemunhas de fé, entre as quais uma mulher que tremia e chorava. Enquanto o centauro atravessava esta outra montanha, saía gente das aldeias e das cidades, com redes e cordas, também com armas de fogo, mas só para assustar. É preciso apanhá-lo vivo, dizia-se. O exército também se pôs em movimento. Aguardava-se o nascer do dia para que os helicópteros levantassem voo e percorressem toda a região. O centauro procurava os caminhos mais escondidos, mas ouviu muitas vezes ladrarem cães, e chegou, mesmo, sob o luar que já esmorecia, a ver grupos de homens que batiam os montes. Toda a noite o centauro caminhou, sempre para o sul. E quando o Sol nasceu estava no alto duma montanha donde viu o mar. Muito ao longe, mar apenas, nenhuma ilha, e o som duma brisa que cheirava a pinheiros, não o bater da onda, não o perfume angustioso do sal. O mundo parecia um deserto suspenso da palavra povoadora.
Não era um deserto. Ouviu-se de repente um tiro. E então, num arco de círculo largo, saíram homens de detrás das pedras, em grande alarido, mas sem poderem disfarçar o medo, e avançaram com redes e cordas e laços e varas. O cavalo ergueu-se para o espaço, agitou as patas da frente e voltou-se, frenético, para os adversários. O homem quis recuar. Lutaram ambos, atrás, em frente. E na borda da escarpa as patas escorregaram, agitaram-se ansiosas à procura de apoio, e os braços do homem, mas o grande corpo resvalou, caiu no vazio. Vinte metros abaixo, uma lâmina de pedra, inclinada no ângulo necessário, polida por milhares de anos de frio e de calor, de sol e de chuva, de vento e neve desbastando, cortou, degolou o corpo do centauro naquele preciso sítio em que o tronco do homem se mudava em tronco de cavalo. A queda acabou ali. O homem ficou deitado, enfim, de costas, olhando o céu. Mar que se tornava profundo por cima dos seus olhos, mar com pequenas nuvens paradas que eram ilhas, vida imortal. O homem girou a cabeça de um lado para o outro: outra vez mar sem fim, céu interminável. Então olhou o seu corpo. O sangue corria. Metade de um homem. Um homem. E viu que os deuses se aproximavam. Era tempo de morrer.
Excerto do Conto "O Centauro", de José Saramago, In Objecto Quase
O Vulto
De repente, um vulto entra. Pára a um canto na sombra. A luz da taberna, debilitada, não me deixa ver-lhe mais do que as costas largas, deduzo-lhe a magreza e o ar sombrio que desponta pelo perfil fugidio. Senta-se, silencioso e misterioso. Ao virar-se para o empregado, algo me prende o olhar naquela figura. Aquele rosto, o seu ar sinistro evocam-me uma noite que não esqueço. O copo de água ainda espera por mim e um garoto amarelecido atrás do balcão, por sua vez, observa-me. Nada me abstrai do vulto. Continua a imiscuir-se a sua imagem na minha memória até que as linhas finas e desenhadas do seu rosto se matizam numa outra imagem que se define aos poucos. Sim, foi ele. Foi este homem que, naquela noite de há treze anos, me surpreendeu com um pequeno papel. Nele estava escrita a combinação de números da Lotaria seguinte.
Berenice Greco
quinta-feira, 17 de junho de 2010
All we need is love
Estar consciente não coexiste com o fazer de atento. Fazer de consciente é fazer de conta. O estado de alerta aparece quando te afastas e só se mantém, se te manténs afastado. Quando começas a esticar os braços para fora do sono de séculos, deixas de ver o universo como definitivo e relacionas-te com ele apenas como testemunha. A vida passa a ser um filme com um único protagonista, onde todos os outros são figurantes e o universo é apenas o cenário de fundo. Falcão ou anjo ou espírito santo, se despes a tua verdadeira identidade, a vida engole-te, cais em todos os riscos inerentes à condição de crente na matéria. Apaixonas-te pela penosa vida lá fora. E porquê? Porque és maravilhoso a realizar. É maravilhosa a tua obra. Mesmo que ensombrada pela morte, pela dor e pelo ódio, a tua virtude é tão incomensurável que as pedras soltas da escultura se assemelham a obras primas.
DuArte
quarta-feira, 16 de junho de 2010
Metrónomo
É no silêncio que elas vêm. As sombras aracnídeas que se escondem na orla da visão. Os pensamentos negros e gelados. O vazio absoluto do não ser.
O ruído afasta o abismo. Quanto mais fútil e oco melhor. Veneno entorpecedor que me mantém preso a este sonho e me impede de acordar gritando, ofegando.
Durmo pois numa cama de teia de aranha, de seda pegajosa que me embala e me prende, que me sustenta e me sufoca até que de mim nada reste.
Mas nem todo o som é fútil e nem todas as notas vãs... o segredo está no que fazemos com elas.
Jonathan Strange
terça-feira, 15 de junho de 2010
Palavras Versadas
Tão cegos como nós
Entre os laços que visto e dispo
vai minha a vida ela inteira
E em cada acto cego e
ledo
por ela insisto nesta
cegueira
em nos atar seres
desatados
numa vida vivida entre nós
Joshua Magellan
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