sexta-feira, 9 de julho de 2010


Q.I.

É contigo que alinho todas estas palavras no papel, são tuas todas as sílabas que articulo. Tu sabes quem eu sou e sabes o que tu és – e é a ti que agora me dirijo: Eras tu e estavas sempre lá, quando te despias por detrás dos biombos de decência que erguíamos para nos esconder exibicionistas. Eu sei que eras tu, quando me davas as mãos dadas por entre os dedos. Estou certo que eras tu. Sim, é contigo que falo! Foste sempre tu que estiveste por cima da minha cabeça e te espalhavas pelo meu corpo, para violar os meus pensamentos mais íntimos. Retiravas de todas as minhas vidas acontecidas realidades que alguma vez sequer pude viver.
Eu nunca fiz nada do que escrevi ou descrevi, nunca viajei senão pelas estradas de além-corpo. Sou apenas um daqueles geógrafos que vive acomodado a uma secretária a arrotear palimpo-sextos cartográficos – saio apenas uma vez por dia abelha da minha célula hexagonal, para ver o dia e colher o pólen do sol – e limito-me a descodificar e a inserir nas cartas-brancas a informação das tuas vagas explorações, apenas o que me trazes. Tu viajas por todos os lugares por onde as minhas histórias te levam; eu limito-me a construir um mapa-alma inacabado de palavras intemporais, a partir do calabouço onde vivo. Sempre só na minha solidão, aliás, a única companhia que hoje suporto. (Logo hoje... que me apetecia ver gente, gente viva, mas o dia apenas me traz o ruído daquela corrente de ferro que o monstro arrasta).
Tu estavas lá, estiveste sempre lá, viajaste por todos os lugares por onde fomos viajando à roda do meu quarto, nos mundos cartográficos que construo – e nem me dava conta de que me habitavas. Nunca te podia ter quando te queria e só te podia querer porque não te podia ter, só para mim, para ficarmos os dois assim conchegados. Por vezes, vinhas sorrrateira instalar-te nos meus sonhos, dormir comigo, acordar ao meu lado, com todos os detalhes vividos ainda na cabeça em febre-memória. Gosto da tranquilidade com que vais e voltas, com que te acercas de tudo o que toco para eu te poder tocar a ti. Tu estás em todo o lado, em todos os momentos que preenchem o espaço cheio da minha solidão, és a única companheira com quem nunca estou só a ver-me passar.
Quando me deito contigo e não penso em ninguém, penso logo em alguém e nunca estou acordado, porque não posso adormecer senão nos teus braços. Tu e a memória tão sobrevivida da minha Mãe estão por todo o lado, em todos os mecanismos do meu pensamento, são corrente à volta da minha roda dentada mental. Quando ela partiu acomodaste-me no teu regaço e desfiaste estórias por entre carinhos que outrora foram tão reais. Estes traços fundos que ostento na alma, são aquela verdade crua que foi viver para o céu e me deixou só contigo. Desgraçadamente, só contigo. Sabes que não o digo porque não goste de ti: poderíamos até viver todos juntos, não fosse a terrível tendência de a bruta realidade se apoderar de todos os nossos espaços íntimos e queridos, de se impor, de cortar o ténue e longo fio que nos liga aos momentos eternos.
Hoje não te senti em todo o dia, teimaste em andar por lá e deixar-me aqui fechado com a minha austera e cruel verdade. Trabalhei todas as horas mortificadas para esquecer a tua ausência. Esperei pelos sonhos até adormecer. Sonhei contigo o que tu quiseste sonhar comigo, adorei cada imagem até à liberdade. Quando chegaste à noite e pousaste sobre mim adormecido no sofá, entraste vestida de tule nos meus sonhos, invadiste todos os mesus espaços. Ainda me lembro como te despias ontem, de como soava o langor da tua chamada, de como me despias vagamente e me envolvias na tua névoa. Como me dava e me contorcia, e gemia, e te pedia mais. Beijávamo-nos... beijava-nos a realidade também, beijávamo-nos os três. Tu foste embora, e ela perguntou-me se tinha gostado dos teus beijos. E eu perguntei-lhe também: confessámos ambos que sim e beijámo-nos de novo, fundo, até te sentir.
Ao cabo da vida, sem medos, acabamos sobrevindos em catarse e adormecemos cansados de projectar como seria o que jamais chegou a ser. Cansados de tudo, vivemos e morremos sempre partida para voltar, deixando no rasto da nossa sombra um anúncio de interno retorno. Tu sobrevives e viverás até no fundo do buraco negro mais fundo, no abismo, no lugar onde vivem os que mergulham na felicidade eterna. Nasces na palma da mão nossa e só morres no momento de a crisparmos impotentes, de cingirmos o nosso mundo-imo sem te chegar a sentir. Vives realidade em ti mesma, vais e voltas a nós, até ao segundo final. Sempre a nossa,

Querida Imaginação...


Joshua M.

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