sábado, 29 de maio de 2010
Crónica Benzodiazepina
Morreu O Meu Herói
O meu primeiro herói foi o Capuchinho Vermelho, sempre gostei das cores quentes em banho de Maria. Imagino um pequeno rebento a ser lavado na água da gruta à luz das estrelas. Coitadinho... e com o frio de rachar que está sempre por aquela altura do ano, ainda que os climas mediterrânicos sejam mais amenos que os dos civilizados bárbaros do norte. Mesmo antes da colheita da maçã as árvores já eram ignorantes, nunca perceberam nada de heróis. Pois, eu tive o meu primeiro herói ainda antes de existir, nasci um iconoclasta formado, quando me partejaram já estava tatuado de sinais de vitalidade impaciente. Mas, o Capuchinho, aquela cena da avó é bem marada, ainda mais para os putos: caçadores que que comem um lobo que comeu a avó e afinal queria comer o Capuchinho também, não tivesse esta feito um desvio ao habitual caminho. Ah... como todos os desvios à ataraxia da realidade são saborosas chávenas de leite com mel, servidas pelos deuses para nos ensinar que podemos habitar um leito de doçura, muito aquém da sua real inexistência!
As árvores nunca tiveram a sabedoria suficiente para se encarregar do destino dos homens; aos homens nunca foi dada a educação bastante para aprenderem a respeitar as árvores.
Gosto de conchas: elas lembram-me a terra que percorro até ao mar. E gosto do mar: por toda a terrra que me separa dele. A concha é o signo dos romeiros perdidos em busca do que não podem encontrar, caminham sempre e nunca chegam senão à sua própria fé. In hoc signo vinces – diziam já antigos catequéticos. A concha trespassa o norte do marinheiro, até o vergar sobre a mortalha da saudade, até o guiar por mapas imaginários a uma cruz quebrada de pranto. Usei uma concha pendurada ao pescoço quando era jovem, quando me perdia no rio, porque no rio não há conchas perfeitas e salgadas.
Gosto do verde sobre o verde, em várias tonalidades de verde, nos campos de onde tudo desabrocha a partir do verde. Vejo o verde nos olhos das pedras húmidas, sempre verdes em tempos de musgo e líquenes. Nada como as árvores para cobrir tudo de côr, mas o verde persiste em ser vida depois da flor. E como são belas as flores marinhas e as outras pintadas de cores, brotos entre a esperança do verde. Basta-me sol e água para que sobreviva, por isso sou verde e colho o meu alimento da terra bruta: germinei, cresci, entronquei, ramifiquei, frutifiquei e lancei novas sementes – e vou mantendo sempre verde uma parte de mim, deixando intactas todas as fantasias do tempo em que ainda era muito verde. E gostava de ter uma concha pequenina verde água, para me banhar e ver nela os meus olhos reflectidos no espelho.
Estou apaixonado por uma ideia, de que não faço ideia o que seja. Há um lapso temporal ou espacial entre mim e essa ideia – quando julgo chegar no momento certo, a ideia já se ultrapassou a si própria e já é outra; quando julgo que a ideia está mesmo ali, corro, mas ela vai-se distanciando como o horizonte. Por isso vibro de prazer com as ideias, porque quando são livres não se apegam às pessoas em casamentos de conveniência, não redundam em relações monótonas.
As pessoas não fazem ideia do que as espera, e, no entanto, essa é a ideia mais certa do destino.
Um dos meus ídolos caídos é o Pai Natal. Sempre admirei os homens de barba branca que passam o ano a comprar prendas e um dia se enfiam habilmente por uma chaminé, esquecendo a idade e o peso do corpo, só para trazerem prendas aos inocentes que têm pais suficientemente ricos e imaginosos. Hoje odeio o filho do Pai Natal, porque renasce todos os anos à coca do consumo estampado a cores nos cartazes. Por isso acho que vou gerar um novo Pai Natal, cujas prendas sejam virtudes de todas as cores para dar aos mais novos, e, no mesmo acto, engendrar um novo Jesus menino, filho legítimo do Pai Natal, em vez de filho de uma pomba parva.
E se parvo (em pequeno sentido), por infeliz acaso, fosse o senhor das prendas, o dito espírito sacro-santo? Não imagino uma pomba vestida de Pai Natal, isso assustaria qualquer criança, pareceria um palhaço kitsch ou um super-herói sem emprego. Além de que, ele, o velho Pai Natal, e o tal espírito traidor, nunca passaram de uma ideia, comparados com o menino Jesus que se fez um homem, correu mundo e agitou a malta. Nunca chegou a velho, nem nunca deu presentes de Natal a ninguém, senão na forma de palavras políticas - veneno.
Joshua M.
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