quinta-feira, 13 de maio de 2010


vida animal

sou do tempo em que os animais sonhavam. nem sempre
sonhar cegou como um cancro silencioso. sou do tempo,
como outros são de alguém com muralhas ou de um lugar
ao qual inventaram fome. peso aproximadamente 37 gramas
na colher com que deus rapa as cidades nos dias em que a
fé insaciável corre perigo. já amei os animais em contraluz.
e um animal que podia ver-se claramente. sonhei-o no limiar
do apodrecer furtivo das carnes. já descarnei o amor com
o cutelo das palavras. afiei os gumes lustrosos do silêncio
na pedra dos ossos. o sangue cristalizando à solidão. e era
noite cortante no poço da memória quando o ventre azul
das nuvens se precipitava no espanto agoniado das asas. já
me banqueteei na intangível estupidez ufana dos anjos. eu
já me perdi. atirei pedras ao coração quando ninguém via.
já estive ocupadíssimo à espera de amanhã. sou do tempo
que nunca chega. sou da espécie de fantasmas que se senta
no sentido inverso da marcha dos transportes. já vi a vida
andar para trás, acreditando haver tesouros lá no fundo das
crianças. conheci pela primeira vez o som da mão quando
me agarraste pelo poema. perdi tudo na reviravolta violenta
do horário de saída do coração. eu sou do tempo em que os
animais já não arranjam trabalho. com uma mão irrompo no
peito próprio e sustenho o coração para saber o que foi. o que
fui. sou da estação em que é fria a reencarnação da mentira.
havia animais debatendo-se convulsivamente como um músculo
de verdade, a morte luzia no escuro quando sonhavam. na mão
restante tenho força para derrubar qualquer animal sorrateiro
aproximado do avesso que sou. do tempo em que cada palavra
se vergava no dealbar da extinção para o nascimento da seguinte.
sou do tempo em que animais perdidos conheciam a posição exacta
da própria ausência. falavam vagarosamente, como se estivessem
para chegar. como se o passado fosse um instinto de sobrevivência.
como se não fossem do tempo. rumina silenciosamente, regurgita
silenciosamente

Bill EnGates

Sem comentários: