sexta-feira, 28 de maio de 2010


(Re)Encarnación

Encarnación foi encontrada inanimada, no pátio da sua casa, no dia mais aziago da terra. Quase ninguém a via nos últimos anos, fechada no seu eremitério e resignada na sua viuvez. Um dia tenebroso que tinha feito os pescadores responder mais cedo à chamada telúrica, de tal forma ameaçava o mar, prenúncio de desgraça e morte. A notícia de uma Encarnación morta correu tão depressa como a de uma Encarnación afinal viva e recuperada. Os homens que decoravam todos os dias a taverna da vila viram-se, de repente, enlevados com a memória da beleza quase asfixiante de Encarnación, mulher de uma sensualidade singular. Recordaram, em silêncio e cada um à sua maneira, a jovem que todos os dias atravessava a praça com os seus contornos voluptuosos e cabelos ao vento, deixando-os esquecidos em qualquer desejo perdido e carnal. A mágoa de uma deusa caída trazida pela primeira notícia deu lugar ao sonho antigo mudamente acalentado por todos os homens com sangue na guelra, o sonho do toque e do grito dado por uma mulher em chamas de prazer – e que ninguém conhecera a não ser Rámon Furtado, homem de olhos tumulares e rosto apolíneo. As mulheres não se permitiam a vê-la como uma Vénus. Viam-na como uma meretrice que lhes roubava os desejos mais recônditos dos maridos. Desprezavam-na a tempo inteiro. Por isso, quando souberam que afinal Encarnación não morrera, cuspiram mais uma vez no chão e renegaram o seu nome. Não disfarçaram a raiva e a aleivosia que dedicaram sempre a esta criatura do diabo e a memória fugidia de uma mulher polida e recatada não as apaziguava nem no momento de pedir perdão pelos seus próprios pecados carnais. Não tardaram a conjecturar sobre a autoria do crime de que esta mulher teria sido vítima. Sem saber se de crime se tratava.

Berenice Greco

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