sexta-feira, 24 de setembro de 2010
O Desaire dos Porcos
Era mesmo contigo que queria falar. Sim, contigo, senta-te aí e tenta entender o que te quero dizer. Se tivesses um grande porco e esse porco comesse a comida dos outros animais que tens, não deixando nenhum animal medrar em seu redor, que farias? Dizia Samuel para David, vizinhos e amigos desde a celebração do Bar Mitzvah de ambos na sinagoga de Hébron. Não sei, acho que o matava, se assim fosse... Responde-lhe David. Pois, é esse o meu problema: tenho um porco enorme e mau. O que era apenas um leitãozinho inofensivo e comilão transformou-se num monstro que agora aterroriza os outros animais. Pensei bem no assunto e já decidi, vou matar aquele porco enorme e fazer uma festa ainda maior que a do ano passado. Era um porco com cerca de duzentos quilos, daria carne de sobra para toda a gente do Kibutz. Não faltaria comida para todos os convivas e poderia ainda conservar em sal e especiarias uma ou duas patas do porco, para consumir durante o inverno com a família. Assim fez Samuel, passado o Sabath, chamou toda a vizinhança e a folia durou uma noitada ao som dos cânticos animados pelo álcool e pelo estômago reconfortado. No dia seguinte tudo voltou à normalidade na parcela rural a cargo de Samuel, os outros porcos, as ovelhas, as cabras e as galinhas medravam a cada grão, a cada réstia de verde que despontava do chão. Já não viviam no desespero de ver o grande porco comer tudo, ou sofrer os seus ataques quando tentavam colher algum quinhão do que ele achava só a ele pertencer. De tudo o que era comestível o porco se apropriava, sem pensar senão na sua pópria barriga. Mas, alguns meses depois, um outro porco, que antes até parecia o mais pacífico, sendo o mais sacrificado pelo antigo déspota, tornara-se agora o maior porco da exploração e começava a atormentar e a impedir os outros animais de comer. À medida que a sua estatura e força aumentavam à custa da comida que roubava aos outros, este porco tornava-se cada vez mais violento e voraz. Passado algum tempo, o pobre Samuel chegara à mesma situação, já nem o seu sustento e da família estava seguro, pois o voraz porco deglutia tudo o que encontrava. Até pão ázimo deixara de haver na mesa, porque o suíno devorara todo o trigo. Descontente com a atitude do animal que tão bem tratara, Samuel resolve fazer mais uma festa e sacrificar este novel bácoro déspota que o estava a arruinar. Ainda lhe restavam três porcos que, haveriam de sobreviver, apesar de esqueléticos por se terem alimentado apenas dos restos do seu congénere dominante.
Contudo, de cada vez que Samuel matava um dos despóticos cevados, porque ele se queria apoderar de todas as provisões, surgia outro no seu lugar, com idêntica voracidade e a mesma tenacidade em guardar o melhor para si. Por outro lado, as festas de Samuel eram já badaladas e o seu assado de porco um dos mais afamados de Haifa e arredores, mas o último dos grandes machos, que tentava dominar e açambarcar para si todo o alimento, já se consumira como os anteriores. Restava agora tão só uma porca e estava prenha. Era ela que dominava agora os outros animais e impunha a sua austera lei da fome aos demais. Porém, nenhum criador ousaria matar uma fêmea em fase de gestação, e Samuel também não o faria. Teria mesmo de comunicar aos esperados convivas que nesse ano não haveria porco nem festa. No entanto, quis o acaso que, a ora dominadora porca morresse de indigestão, de tanto trigo que comeu. Porém, esta não se finou sem antes parir um rechonchudo leitão, um belo exemplar para manter a espécie, o último daquela casta.
Samuel chorou de alegria ao ver o pequeno e trigueiro cevado, que renascia das cinzas da morte como uma dádiva divina. Quando tudo parecia estar perdido, eis que do mundo dos mortos ressucita o último dos suínos da casta dos mandadores, um macho varão atarracado e moreno, que com certeza asseguraria uma bela descendência. Haleluiah, deveriam começar imediatamente os preparativos, não havia tempo a perder, era véspera do Bar Mitzvah do seu filho Benjamim e Samuel queria ter tudo pronto a tempo para os festejos. Agarrou no pequeno porco ao colo e rezou, mas ao pegar-lhe reparou que ele tinha, como que tatuada, uma marca no peito – uma estranha cruz de pontas quebradas. Samuel tomou imediatamente aquilo como um sinal de deus, era ele que lhe enviava aquele animal para o compensar de todas as perdas. Agarrou então nas patas dianteiras do animal com uma das mãos e, pondo os pés de cima das patas traseiras contra o chão, espetou-lhe suavemente uma faca no pescoço até que o sangue começou a jorrar. Enquanto isto, pensava: afinal é apenas um leitão; apenas mais um porco, ainda que pequenino. A partir de então, não mais voltou a haver cevados no kibutz; e, por ali, ficou feita a justiça que os homens fazem pela mão dos deuses.
Joshua M.
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