domingo, 2 de maio de 2010

NO DIA DE TODAS AS MÃES... II


A Palavra-Mãe

A última vez que te vi estavas ao fundo da estrada do fim do mundo, fazias-me adeus e sorrias, como sempre sorrias quando me falavas das tuas quimeras, dos teus sonhos, que afinal eram sempre os nossos. Resta-me hoje vincada na memória a visão dos teus olhos, de pétalas abertas a dar mel em flor, quando te enlevavas no entusiasmo da palavra que fazia aprender. Foste o começo e o fim do mundo que para mim teve sentido. E no fim de tudo, restou-me começar de novo desde o início de um outro mundo.
Nos largos dias da minha vida estiveste sempre lá, em cada história, em cada acto, em cada realização – eras ponte erguida para todas as travessias, barco em quilha para cortar todas as marés. Eras conforto nas horas perdidas, falavas à minha tristeza com palavras-alegria, ao meu desespero com palavras-coragem. Ainda sei contar as horas repousadas sobre as tuas histórias, cheias de palavras-bálsamo, de palavras-ensinamento, de palavras-afecto, em que os heróis eram tristes mas valorosos e o final era sempre justo e redentor. Sabemos de antemão que todas as histórias têm um epílogo, mas a nossa história nunca acaba, porque nunca hão-de acabar as histórias iguais à nossa.
Antes de cada passo, lá estavas ao lado das dificuldades do trajecto e caminhavas comigo, sempre os dois de mãos enlaçadas, ensinando-me que se enchesse o peito de afeição poderia flutuar, até talvez voar sobre todo o mal do mundo. E assim lograr a travessia: vencer qualquer vereda por mais íngreme e pedregosa que fosse; ultrapassar qualquer obstáculo por mais alto e firme que se erguesse. Ensinaste-me que o mundo nunca seria como tu e eu o desejávamos, mas que, tal como os obstáculos e os caminhos árduos, a vida poderia ser vivida se a quiséssemos vencer com a nossa vontade de ser verdade. E que, a vida valia a pena, se um dia ao depormos o nosso coração na balança de Osíris, ao sujeitarmo-nos ao julgamento dos justos, o nosso órgão vital levitasse mesmo já sem a vida que animara.
Deixaste em mim memórias que ostento como sinais de afectos, só elas me atenuam estas cicatrizes com que a vida me sulcou. Marcaste-me à nascença com aquele sinal amuleto que só nós os dois temos, marca de nós mesmos. Essa marca e o teu sorriso, estampado naquela foto, quando me pegaste ao nascer, foram as primeiras recordações de ti, as que guardarei, no cimo da gaveta das boas lembranças, até te reencontrar.
Hoje esperas-me no final de cada estrada, à noite, para me acalentar a jornada com as tuas palavras-amigas, com as tuas palavras-certas. Sabes, sinto tão forte a tua presença quando tu me falas no meio do sono e me apareces placidamente a sorrir no breu desta longa noite. Tu és a primeira palavra que aprendi e a última palavra que direi, tu és a Palavra-Mãe.

Joshua M.

1 comentário:

Duarte disse...

Vou-te contar um segredo.
Há um lugar em mim que não é dentro nem fora. É um lugar de mim que aparentemente pulsa algures entre os olhos. Uma impressão. Quando a sensação surgiu, pensei que fosse uma espinha; aquelas borbulhas enormes que nos marcam durante uns dias, com um unicórnio de raízes profundas. A borbulha nunca chegou a aparecer. Como a sensação continuava, dia após dia, a pulsar cada vez mais forte; o medo gritou-me que tinha um tumor a crescer na cabeça, a pressionar-me o osso que protege o cérebro do ar poluído lá fora. Vou morrer - pensei. Foram as palavras sábias e doces da minha mulher, que me salvaram do pânico – Descansa amor, que não é um tumor..
Como te digo, descobri um lugar em mim que não é daqui. É uma espécie de sentido de aranha, sensível ao perigo, muito sensível ao sol, ao lusco-fusco.
Há coisa de dias, disseram-me que eu tinha a morada aberta, um terceiro olho, indecifrável pelas máquinas da medicina. Ri-me, porque eu não tenho morada definida faz algum tempo. Ela insistiu que eu tinha um pé em cada mundo - Qual mundo qual quê! – pensei.
O que é mais estranho na coisa, é que eu estou a ver mais do que devia. A marca na testa, abriu uma porta para outros lugares. Lugares tão próximos, tão próximos, que não os vemos; tão tapados que estão pelas camadas de medo e culpa. Lugares belos, indescritíveis.
Quando li o teu texto.. Lindo o teu texto.
Quando li o teu texto, senti uma presença nas palavras, nas ideias, nas pausas que se seguiam a cada vírgula. Era como se houvesse uma terceira mão a acariciar-te os dedos, amparando os murros na parede, com abraços contínuos, capazes de aguentar com tudo, para poderes seguir em frente, para lá da revolta que te afasta de ser feliz.
Amar um corpo é correr contra uma parede, muito depressa, até nos esmagarmos todos pela injustiça do tempo. É tão inglório que não é lógico.
Esse abraço já não tem forma, porque as formas envelhecem, sujeitas às regras que juramos serem verdadeiras. Mas as formas são efeitos. Apenas efeitos, e as causas; essas não nunca morrem.
Sempre que sentes esse abraço, essa ideia de permanência; acredita mais nela, que no penedo mais duro, na mulher mais bela, no carro mais rápido, na revolução mais revoltosa..