terça-feira, 13 de julho de 2010

SETE DIAS SETE PECADOS - A INVEJA (II)


Lacrimosa

Pão e vinho, que deliciosa ironia. Depois de um dia a estacionar carros e a apelar à generosidade alheia, esta figura patética aprecia o pôr-do-sol. Memórias poderosas como vulcões assaltam a sua mente e fazem os seus olhos jorrar lágrimas quentes como lava.
Tem como única companhia o melhor amigo do homem. Um exemplar coxo e sarnento que tal como ele perdeu o jogo da vida.
“Queres ver um truque rapaz.” disse o ancião libertando da sua boca o fétido e amargo cheiro do desespero.
Pega então na sua garrafa de vinho, quase vazia e com um passar das suas mãos, como um ilusionista barato, enche por magia a vasilha vítrea.
“Hah! Ainda tenho um truque ou dois na manga.”
O rafeiro, ouvindo uma voz que lhe faz companhia, deita-se junto ao mendigo e também ele parece apreciar o pôr-do-sol.
“Queres ouvir uma história rapaz?” disse o mendigo.
Tomando o silêncio do animal como assentimento, o mendigo fala então. “Sabes que eu, como todos os outros, não estive sempre aqui. Também já fui um vencedor. A minha luz iluminou o universo, a minha beleza era incomparável, mas não foi suficiente. Queria ser o alfa e o ómega, queria ter toda a humanidade aos meus pés, apenas eu e nenhum outro era digno de tão alto cargo. De ser senhor de Jerusalém, a cidade prateada onde os anjos voam e a o êxtase é eterno. Pelo menos para aqueles que se contentam com isso. Eu, eu sempre quis mais, nada me chegava.”
É neste momento que o rafeiro olha nos olhos do mendigo para aí ver reflectida a passada glória celeste de que ele foi portador. Sem saber o que fazer com tamanha revelação, o rafeiro limita-se a coçar as pulgas e volta a deitar-se.
“Em todo o caso, podes ver como é que isto terminou! Banido do céu! Também eu expulso do paraíso. Sabes, eu já dominei nações inteiras, já ordenei o holocausto de milhões, no auge do meu poder e enlouquecido com a minha própria vaidade, reduzi cidades a cinzas. Mas nada disso me bastou. A guerra, perdi-a, e mesmo que a tivesse ganho ainda assim não teria o que queria.”
O animal olha então olha de novo para o mendigo e inclina ligeiramente a cabeça para o lado, numa expressão de verdadeira interrogação.
“Sabes, eu não invejo Lúcifer por ter ganho a guerra. Invejo-o por ter tido a coragem para me desafiar!”
Sentindo a loucura na voz do homem que foi deus, o animal afasta-se coxeando.
“Tomai e bebei todos!” grita o homem. “Tomai e bebei todos!” grita o deus, “Eu hei-de voltar! Se o cabrão do Lúcifer conseguiu, eu também vou conseguir!” grita o louco.
“Assim que acabar esta garrafa...” murmurou.
 
Jonathan Strange

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