sexta-feira, 30 de julho de 2010


Um Anjo Sobre a Cidade

Cruzo os passos abertos por entre os muros que invento, sóbrio, sigo e reinvento uma cidade nua, desfeita na cinza do tempo, na embriaguez da noite, uma cidade sem muros. Imagino uma cidade, apenas uma cidade parada nos lugares todos, no azul das ruas calcetadas, por onde a luz reflecte os objectos. Uma cidade com fantasmas de pássaros iluminados. Mas, a cada sonho, tenho sempre de reinventar a cidade, a cada estória que conto à noite, no escuro do meu íntimo devassado pela luz persistente dos candeeiros a gás, reinvento a cidade, porque a cidade nunca foi inventada.

Os homens que habitam a cidade fogem na penumbra, tementes; fogem do silêncio que pragueja contra eles, que cospe frases violentas contra os muros. Eu, limito-me a respirar a cidade, a respirar a cidade com ou sem revolução, escutando sempre na madrugada a marcha dos soldados acender de novo as ruas, porque, ao marchar, as botas partilham as calçadas e os sonhos com os chinelos das varinas, com os pés frios dos pedintes. E as espingardas são engolidas pela cidade.

Todas as mulheres vivem na minha cidade, habitam-na ao alto e em baixo, e são tardias – adormecem no odor das madrugadas, porque o rio não descansa para se fazer ao mar, para se libertar da cidade. E as mulheres sonham a morte dos homens, vivem na saudade, cantam as agruras da saudade, choram de saudade até fazerem erguer um mar de lágrimas, maré-cheia de espuma e luz, a enfeitar as asas da cidade. Morrem de saudade. E a cidade chora os seus mortos; e as carpideiras são as mulheres que já não vivem, que já não cantam, que são a saudade, que são a cidade.

Um dia uma praga apocalíptica cairá sobre a cidade e levará as mulheres e os homens, e levará a cidade para lá, onde as cidades não existem, nem o tempo. Nem a saudade existirá, para lá dos muros da cidade que não existe. Derrubar-se-ão os muros para provar que a cidade nunca existiu, mas a sua luz não se apagará mais e a cidade, iluminada, será uma quimera, uma casa-única, onde caberá toda a luz da cidade.

Porque o tempo trará o futuro – e quando, um dia, deixar de existir o tempo a cidade perdurará para todo o sempre, porque ela é a memória viva e morta de todas as vidas que a viveram; ela é o cruzamento de todos os destinos que a cruzaram; a rua estreita que se alarga ao passo dos transeuntes; a rua que não existe, porque a cidade também não existe para além da sua própria realidade. Todos os sonhos são uma cidade sem realidade. Todos os sonhos são a minha cidade real.

Porque o tempo fez tombar o odor a morte sobre a cidade e assassinou todos os justos, criou recantos onde a cidade sobrevive a todos os injustos. A cidade deve morrer para sobreviver, para se perpetuar. Porque a vida da cidade existe fora dela, sem que ela se aperceba do fim, a vida prossegue nela. No final, restarão algumas luzes apressadas a cruzar ténues os espaços das ruas desertas; os vultos convertidos à luz das madrugadas, auroras de espaços limitados a ensinarem a forma dos muros. No final, não restará senão a cidade, pedra sobre pedra, a cidade a existir nuvem da cidade – o caos, as ruínas...

Todos os caminhos levam à cidade, à minha cidade, onde os cotovelos presos aos joelhos esperam, impacientes, a chegada de um anjo.

Em seguida vi descer do céu um anjo que tinha na mão a chave do Abismo e uma grande cadeia. Subjugou o dragão, a serpente antiga, que é o Demónio, Satanás, e acorrentou-o por mil anos.

Apocalipse, 20, 1


Joshua M.

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