quinta-feira, 15 de julho de 2010

SETE DIAS SETE PECADOS - A PREGUIÇA (II)


A virtude da Preguiça

A indústria estava em mutação, as máquinas invadiam as unidades fabris substituindo o operário, provocando uma nova vaga de desempregados e de famintos. Em contrapartida, o aumento da produção engrossava ainda mais os lucros de uma alta burguesia industrial. A sociedade estava fragmentada: a farta riqueza de uns, resultava na miserabilidade de outros. Neste mundo em mudança agudizava-se a questão social, emergiam novos movimentos políticos. As classes trabalhadoras, que entretanto começavam a ter consciência dos seus direitos, entravam em via de colisão com os interesses dos patrões. Nas fábricas e nas praças, eram realizados plenários de trabalhadores para informar e organizar estratégias de luta por um mundo melhor, no qual, a riqueza fosse distribuída mais equitativamente por todos os que se engajavam no processo produtivo.
Bernard ia, pela primeira vez, a uma dessas manifestações em defesa dos direitos dos trabalhadores, estava convicto que as suas reivindicações contra a desumanidade da maquinaria seriam atendidas. Tinha sido convidado por um sindicalista chamado Pierre, que operava na mesma fábrica. Depois de terem caminhado ao longo da avenida gritando palavras de ordem contra a maquinização, chegaram ao local combinado, onde se juntaram a algumas dezenas de companheiros. Mas, para seu espanto, estes vociferavam contra o eminente orador que, discursando no alto de um palanque, ia desfiando algumas frases de sapientes, assumindo uma defesa da maquinaria e da preguiça. Bernard reteve duas delas pelo seu cariz subversivo – a primeira, quando citou Lessing, que aconselhava, “Sejamos preguiçosos em tudo, excepto em amar e em beber, excepto em sermos preguiçosos”; e, uma outra, retirada do Evangelho, em que São Mateus, predicava aos fiéis: ”Contemplai o crescimento dos lírios dos campos, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos, Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho”.
Perplexo e confuso com a dissertação do orador, questionava-se: por que razão, em vez de um direito ao trabalho, ele falara apenas num direito ao descanso? Bernard revelava um semblante carregado de dúvidas, a sua cabeça fervilhava, sentindo-se ainda mais confuso após o meeting. Abordou Pierre e questionou-o sobre o que ele pensava das palavras de tão revolucionário orador. No final da jornada de trabalho o seu companheiro prontificou-se em esclarecê-lo mas, era já tarde, quando saíram da fábrica e as incertezas de Bernard teriam de esperar pelo dia seguinte.
Na manhã seguinte, enquanto comiam, sentados sobre um tear mecânico, Pierre retirou da lancheira o periódico L’Egalité, de Maio de 1880, e sugeriu que lesse com muita atenção o artigo de Paul Lafargue. Ficou estupefacto, ao ler nele as palavras que o orador dissera no dia anterior. Lafargue afirmava, no seu artigo, que as grandes civilizações desprezavam o trabalho, como era o caso dos gregos. Na sociedade grega apenas se toleravam dois tipos de actividade: o Otium Philosophandi e o Nec Otium – apenas aos escravos era permitido trabalhar; ao homem livre estavam reservados exercícios físicos, jogos de inteligência, ou o comércio. Os filósofos gregos ensinavam o menosprezo pelo labor, consideravam-no degradante para o homem livre, por oposição, a preguiça era exaltada e cantada pelos poetas. Agora entendia aquela tirada de São Mateus: afinal, até o próprio Cristo tinha pregado na montanha a virtude da preguiça. Afinal, as máquinas não eram inimigas do Homem e o preconceito da escravatura em Aristóteles e Pitágoras estaria agora resolvido sem sacrificar alguns Homens ao interesse de outros, pois, seriam elas a efectuar o trabalho, dispensando-os para a ociosidade. Mas, para que esta realidade fosse alcançada, seria também necessário que os meios de produção fossem geridos por todos, desoprimindo a humanidade, concedendo-lhe assim o verdadeiro Direito à Preguiça.


M. Jota

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